#Queermuseu – arte e teologia


Sempre que emergem assuntos e situações “polêmicas” como a recente a respeito do “QueerMuseu” e o fechamento da exposição, tendo a ficar meio sem palavras porque tanta coisa é dita por tanta gente que é quase impossível lidar com tantas opiniões, posicionamentos, reflexões sem parecer simplista e abrir-se a mais um bombardeio de reações que pouco tem de tentativa de diálogo ou efetiva reflexão sobre todas as questões implicadas. Mas, por vários motivos, decidi que gostaria de dizer algo sobre isso, sem a pretensão de dar uma resposta a quem quer que seja e sem a pretensão de “resolver o caso”. São algumas ideias que me parecem pertinentes e nem gastem seu tempo tentando demonizar ou glorificar o que eu digo. Se ajudar tá; senão, deixa pra lá. Não tenho nada de definitivo a dizer sobre o assunto a não ser #reabreQueerMuseu e #godsavethequeer.
Não quero falar sobre a relação entre a exposição e os movimentos sociais LGBT/Queer e suas possíveis des/conexões. Essa é uma grande e longa discussão que nos acompanha, artistas, acadêmicas e militantes (às vezes somos as três coisas) e é bom que continuemos conversando sobre isso. Não quero falar sobre liberdade de expressão e censura como se esses fossem valores ou ideias transcendentais que justificassem qualquer posicionamento (contra ou a favor, já que é usado tanto por pessoas e grupos motivados por ódio quanto por quem advoga e luta por justiça), pois esse é um debate que também temos que enfrentar como sociedade a partir das relações cotidianas e materiais que vivemos. Não quero falar sobre conceitos de arte e o que alguns têm chamado de “apologia” (a pedofilia e zoofilia), porque sim, toda arte é política – e sexual, e, gente, vamos parar com delírios e fantasias de desejos reprimidos ou tentativas de criar um pânico moral que justifique a instauração de práticas e sistemas de controle ditatoriais (como as que já estamos experimentando) que só podem produzir violência e injustiça (melhorem heteros). Também não quero falar sobre a história da arte e de sua relação tanto com temas ou questões explicitamente religiosas (arte sacra) ou de como representações artísticas (no campo das artes plásticas ou outras) têm afetado, dialogado, provocado, a reflexão no âmbito das instituições e práticas religiosas. E não quer falar da relação entre a instituição bancária que promoveu, hospedou e fechou a exposição com questões culturais e políticas mais amplas, a qual tem sido chamada de “comunista” (oi?) e “satânica” (ainda se fosse pelo seu papel de exploração no sistema capEtalista). Todas essas questões são objeto de estudo, debate e disputa exaustivos em diferentes espaços e continuarão sendo.
Dito de maneira muito simples, eu quero falar é da relação entre arte e teologia desde o meu lugar como teólogo, algumas vezes identificado com o adjetivo/conceito que dá nome à exposição “queer”. Um dos meus incômodos nessa discussão e “polêmica” toda é a tentativa de (de um lado e de outro) afirmar que arte e religião (teologia) não tem relação e cada um deve cuidar das suas coisas. Produz-se uma separação “disciplinar” para dizer que uma ofende a outra (no caso a arte a teologia) ou que a outra se sente ofendida por uma (no caso a teologia em relação à arte). Esses campos não são, nem em sua materialidade e nem em seus fundamentos, radicalmente separados ou separáveis. Os diversos estudos no campo da religião e da teologia deveriam ser suficientes para evidenciar isso. No campo das teologias e das práticas eclesiásticas libertadoras (feministas, negras, LGBT/queer, camponesas), por exemplo, a relação entre arte e teologia tem sido um elemento fundamental tanto para entender os elementos “religiosos” (sagrados, transcendentes, revelatórios) presentes na arte, quanto para pensar de que forma a cultura (entendida em seu sentido mais amplo possível de relações humanas, mas também com o mundo e o sagrado/transcendente) apresenta elementos que podem ser pensados e elaborados a partir do campo religioso/teológico. Numa linha mais tradicional e clássica da teologia, a discussão de Paul Tillich (para citar um autor reconhecido na Teologia) sobre uma “teologia da cultura” tem sido usada de maneira diversa para refletir sobre música de vários gêneros, artes plásticas e outras linguagens no campo da “arte”.
Pessoalmente eu tenho trabalhado bastante com o campo da cultura e das artes na reflexão teológica. No texto “Sanguíneo y carbón: arte y teología en el cuerpo” (Teorías queer y teologías: estar en otro lugar. Silvia Regina de Lima Silva; Genilma Boehler; Lars Bedurke. DEI, 2013) trabalhei com literatura, música e pintura para discutir fundamentos, método e teoria em Teologia. No texto “Para sair dos armários: HIV e Aids e teologia no Brasil” (Teologia Pública no Brasil e na África do Sul: Cidadania, interculturalidade e HIV/AIDS. Felipe G. K. Buttelli; Clint Le Bruyns; Rudolf von Sinner. Sinodal, 2014), por exemplo, eu trabalhei com a Campanha Nem Santo de Proteje (que despertou o mesmo tipo de polêmica que o #QueerMuesu) para pensar uma teologia que desse conta dos desafios colocados pela epidemia de HIV/AIDS. No texto “Viado não nasce; estreia! Não morre; vira purpurina” – Diversidade sexual, performatividade e religião numa perspectiva queer” (A religião entre o espetáculo e a intimidade. Alberto da Silva Moreira; Carolina Teles Lemos; Eduardo Gusmão de Quadros. PUC Goiás, 2014) dialoguei com diversas linguagens artísticas para perceber formas de disrupção de discursos e práticas religiosas e teológicas violentas. E não posso deixar de mencionar a obra coletiva “[Re]leituras de Frida Kahlo - Por uma ética estética da diversidade machucada”, organizada por Edla Eggert, na qual teólogas e teólogos estabelecem um diálogo com a produção da artista mexicana Frida Kahlo, na qual foi publicado meu texto “Veadagens teológicas” o qual, posteriormente, inspirou e foi incorporado na minha tese de doutorado e livro “Via(da)gens teológicas: Itinerários para uma teologia queer no Brasil” (Fonte, 2012).

Seguramente que minhas produções e a de tantas outras e tantos outros colegas no campo da Teologia e das Ciências da Religião têm recebido as mesmas etiquetas mencionadas acima (comunista e satânico). Mas, como eu disse, não é sobre isso que quero falar. A questão é que a relação entre arte e teologia é possível, produtiva, necessária e cheia de possibilidades. O que está em discussão não é isso. Como se dá essa discussão e quais os efeitos que produzirá em termos de produção teológica e crença religiosa é um outro assunto e apenas através do engajamento crítico será possível ter uma percepção de quais as possibilidades que se produzirão. Eu, por exemplo, não tive a oportunidade de visitar a exposição e quero muito faze-lo (não por conta da polêmica, mas por conta de meu interesse pessoal e profissional). Quero me deixar afetar pela produção dessas e desses artistas (algumas e alguns dos quais conheço pessoalmente ou seu trabalho) na esperança de que me inspire nas minhas reflexões teológicas e na minha experiência de fé. É possível que não goste, não entenda e não me sinta tocado por todas as obras ou mesmo pelo conjunto da exposição. Mas isso não anula o fato de que a produção artística segue sendo fundamental para a teologia (e a religião) assim como eu creio que aquilo que o que chamamos de religião (sem necessariamente identifica-lo com uma instituição ou crença particular) segue sendo fundamental para pensarmos e construirmos as nossas relações na cultura.

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