Em 27 de dezembro de 2016 eu postei a frase (pergunta) “E
agora, José?” na minha página pessoal do Facebook. Poucas pessoas sabem ou
souberam o que eu queria dizer com aquela frase ou por que a postei, assim,
aleatoriamente. Naquele momento foi a minha reação à apresentação e divulgação
do secretariado que comporia a Governo Municipal da Frente Popular em São
Leopoldo. Àquela época, em resposta a quem me perguntou o significado da
frase/pergunta, afirmei que teríamos um governo melhor do que o anterior (o
sucateamento da cidade em todos os sentidos pelo governo PSDB/PMDB e partidos
aliados), mas que não seria o governo que desejaríamos que fosse. Agora, já bem
adiantado no seu segundo ano de governo tenho a impressão de que está cada vez
mais longe do que o que desejaríamos que fosse.
E antes de seguir as minhas reflexões, já quero deixar
evidente que qualquer tentativa de utilizar essa manifestação por parte de
outros partidos ou lideranças político-partidárias como forma de enfraquecer o
atual governo e/ou autopromover-se não passará de manobra desonesta e uso
indevido da mesma, haja visto que eu não acredito que nenhum dos demais partidos
ou lideranças existentes (especialmente aquelas com mais expressão na cidade)
teria as condições, nesse momento, de apresentar-se como alternativa legítima
diante dos questionamentos que me proponho a fazer. Sigo (ainda) defendendo
esse governo e os partidos que o compõem (uns mais outros menos) e a minha
única intenção é provocar a reflexão e autocrítica. O faço publicamente porque
acredito que não seja uma questão que diz respeito unicamente a um partido ou
um governo, mas a questões que, diante da atual conjuntura, temos que responder
em conjunto, como sociedade.
Também advirto as companheiras e os companheiros do partido
e do governo que qualquer tentativa de me atacar ou desmoralizar será tomada
como somente isso: ataque e desmoralização. Tenho consciência das minhas
limitações, da minha parcialidade e não pretendo (como alguns) apresentar-me como
dono da verdade ou ter a explicação definitiva sobre qualquer assunto que eu
venha a tratar. Vocês me conhecem suficientemente bem para saber que esse não é
o meu perfil nem minha forma de atuação. Mas se escolho me manifestar dessa
forma é porque julgo que possa ser de algum proveito e assumo todas as
responsabilidades por essa ação. Esse não é um ataque, mas um convite à
reflexão.
Honestamente, nem sei se o que escrevo fará alguma diferença
ou provocará alguma reação. Será mais fácil e, talvez, até mais produtivo
ignorar e desmerecer. Não seria nem a primeira vez e nem incomum. Afinal, esse
é um dos pontos ao qual quero me referir. Ainda assim, no contexto em que
vivemos não creio ser possível ou desejável não se manifestar, pois o silêncio
e a falta de ação, em grande medida, nos trouxeram até aqui. Como já falei em
outro momento, nenhuma “grande estratégia” pode se interpor a questões que
precisam ser consideradas, inclusive para que uma “grande estratégia” seja
possível e viável. A realidade nos desafia a fazer tudo junto e misturado.
Mas, voltando ao dia 27 de dezembro de 2016 e à apresentação
e divulgação do “primeiro escalão” do governo que assumiria a administração
municipal em 01 de janeiro de 2017, entre as várias coisas que poderia
mencionar sobre a composição apresentada (desde os partidos que foram
“contemplados” até o perfil de algumas pessoas nomeadas) me restrinjo a uma que
quero tematizar e aprofundar a seguir: a escassa presença (ou a flagrante
ausência) de mulheres no dito “primeiro escalão” (26 X 3).
Já ouvi várias explicações e justificativas para isso, já
questionei de várias formas e houve questionamentos de vários setores sobre
essa questão. Como geralmente acontece, as explicações e justificativas são
piores que o ato em si. Não muito tempo antes questionávamos a composição do
ministério do ilegítimo presidente Michel Temer representado em uma foto que
circulou nas redes sociais e diversas mídias, para repetir uma foto (e um
gesto) quase semelhante. Há algo que muitos de nossos líderes ainda não
entenderam: não é mais possível manter determinadas práticas políticas,
particularmente num contexto em que os movimentos de mulheres, feministas e da
juventude (com presença massiva de mulheres) são a principal força de
resistência às ondas conservadoras e, ao mesmo tempo, o que temos de melhor em
termos de alternativa para um futuro diferente. Isso inclui, fundamentalmente,
a presença e participação das mulheres nos espaços de tomada de decisão e a
mudança na própria concepção de política e prática organizacional (dos partidos
e dos governos).
Para não me alongar demasiadamente vou resumir algumas
questões que tenho percebido desde aquele 27 de dezembro para chegar a uma
situação mais recente. Quando me refiro a “governo” e “partido”, deveria estar
evidente que não me refiro a todas as pessoas, em todos os âmbitos e setores,
mas a uma percepção geral e, nesse caso, a generalização tem a função de ajudar
a pensar no conjunto. Há outras vozes, outras práticas e outras situações que
escapam e tanto podem ser vistas como promessas quanto como confirmação da
regra. Caso contrário a própria reflexão não faria sentido e restaria uma
acusação definitiva, que não é o caso. Senão por outro motivo, é a essas vozes,
práticas e situações que quero indicar como forma de encontrar um outro rumo.
Isso, sim, me parece urgente e necessário.
A minha impressão sobre o que tenho visto em relação à
administração municipal de São Leopoldo nesses meses é de que predominam
antigas e ultrapassadas formas de gestão (política e administrativa) ainda que
possam ser localizadas no campo da esquerda. Algumas até estranhas ao que se
esperaria das lideranças desse mesmo governo, uma vez que já experimentaram
outras práticas no passado. Conheço e reconheço muitas das crises e
contingências que esse governo tem tido que enfrentar desde que assumiu a
administração (inclusive a séria situação financeira com salários e repasses
atrasados, dívidas e receitas comprometidas pela administração anterior). Mas é
justamente a forma de enfrentar essas crises que reforçam a minha impressão.
Fundamentalmente ao que me refiro quando falo de antigas e
ultrapassadas formas de gestão está relacionado precisamente ao que tem relação
direta com a presença e participação das mulheres desde a perspectiva de uma
crítica feminista. Explico: um governo formado em sua maioria por homens (especialmente
no “primeiro escalão”), reuniões e decisões secretas que devem ser acatadas, alianças
questionáveis do ponto de vista ideológico e ético, falta de relação com a
sociedade civil organizada e poucos espaços de diálogo direto com a comunidade
(inclusive a fragilização ou desmerecimento de espaços existentes), disputas
internas intermináveis (nem sempre por razões ideológicas ou éticas e,
geralmente, entre as lideranças masculinas), responsabilização (especialmente
das mulheres, mas também de adversários ou desafetos) pela ineficiência de
propostas e ações (com as quais elas mesmas talvez nem concordassem)... outras
questões poderiam ser acrescentadas e o mesmo poderia ser aplicado ao/s
partido/s.
Todas essas questões evidenciam o que o feminismo tem
chamado de “patriarcado”, como uma forma de organizar a sociedade e exercer as
relações de poder e como ele continua grassando sem que haja uma crítica
contundente e eficaz e a capacidade de construir alternativas reais. É o que
temos dito, de uma maneira mais ou menos consciente, sobre os “erros cometidos”
na campanha eleitoral de 2012, mas que nunca foram nem nomeados e nem
enfrentados efetivamente. Essas práticas e modos de operação patriarcais são
nossos principais adversários e fazem com que sejamos nossos “piores inimigos”.
E a situação recente a que quero me referir evidencia, mais uma vez, esse modus operandi.
Não é à toa que há algumas semanas, quando supostamente
explodiu uma crise (como se tudo tivesse sido tramado em segredo e não se
soubesse que a “crise” vinha se anunciando já há algum tempo), particularmente
com relação à Secretaria de Educação, um dos principais temas de discussão era
se o governo era ou não machista. Ora, não apenas pelas questões colocadas,
mas, principalmente, por toda uma estrutura social e hegemonia cultural
patriarcal, será difícil encontrar alguma instituição (e pessoas que a compõem)
que não reproduza práticas machistas. Essa não deveria nem ser uma questão. Os
homens que nunca tiverem sido machistas ou se beneficiado do patriarcado que
atirem a primeira pedra. Mas o mais preocupante e, na minha opinião,
improdutivo é a forma de lidar com e responder a essas questões, ainda quando
venham na forma de acusação. Mais uma vez prevalece a falta de transparência e
honestidade em lidar com as situações, sobram perguntas e faltam respostas.
O que se sabe (e que veio a público) tanto em meios oficiais
como em publicações pessoais é que se travou uma disputa entre lideranças e
agentes de governo em torno de denúncias sobre assédio feitas por professoras
da Rede Municipal de Educação. Entre acusações de machismo explícito e de
oportunismo político o que menos se falou, até o momento, foi sobre as
denúncias e suas consequências. Em nota oficial absolutamente frágil e
questionável desde vários pontos de vista, afirmou-se a contrariedade a
qualquer prática machista, que as denúncias seriam averiguadas pelos canais
competentes e uma comissão de alto nível (formada por agentes do governo)
acompanharia o processo. Houve exonerações e pedidos de afastamento nunca
explicados ou justificados.
A sensação que fica é que as denúncias das professoras foram
instrumentalizadas para resolver outros conflitos internos do governo sem que se
tenha lidado apropriadamente com a real questão que fez a crise vir à tona. O
número de denúncias, a trajetórias de muitas das professoras envolvidas e a
formalidade com a qual se buscou responder a elas vão contra todas as formas reconhecidas
de manuseio adequado de denúncias desse tipo. E parece que muito do que foi
feito (e continua sendo feito) visa a “salvar” a imagem do governo.
Surpreendentemente, na última sexta-feira, duas semanas após
a mencionada crise gerada, o governo anunciou novos quadros no “primeiro
escalão” destacando, inclusive no título da reportagem sobre o ato, o aumento
do número de mulheres nessa esfera e seu compromisso com os direitos das
mulheres. Sem dúvida é um sinal importante que aponta para possibilidade de
mudanças importantes na gestão municipal. No entanto, se não for fruto de
reflexão e tomada de consciência sobre a sua importância, se não representar
uma efetiva mudança de práticas e funcionar apenas como uma forma de melhorar a
imagem do governo perante a opinião pública, não se transformará em um símbolo (que
não apenas indica, mas participa da realidade que indica) que represente reais mudanças.
Que não haja dúvida: a nomeação de mulheres para espaços
importantes de tomada de decisão no governo é fundamental. É preciso que haja
mais mulheres e jovens nesses espaços, com o direito de cometer erros (uma vez
que muitas estão aprendendo a estar nesses espaços que sempre foram ocupados
por homens e seus jeitos de fazer as coisas), com real poder e sustentação
política para que as suas perspectivas e práticas efetivamente façam a
diferença nesses espaços. Que essa não seja somente uma forma de colocar
remendos novos em panos velhos (o que já sabemos que não funciona), mas de
permitir que o fermento na massa cumpra sua ação de fazer o todo crescer.
Mas esse ato não apaga o fato de que nos faltam respostas e
nos sobram perguntas sobre um outro grupo de mulheres, as professoras, que até
onde se sabe não tiveram suas vozes ouvidas, consideradas ou respeitadas.
Afinal, onde estão as professoras e seus relatos?
Há um outro grupo de mulheres (já que elas são maioria nesses
espaços) que, aparentemente, não tiveram suas vozes ouvidas e consideradas.
Mais que isso, foram acusadas por agentes do governo (publicamente) de terem
sido levianas e desconhecerem (ou desrespeitarem) os processos institucionais
agindo de maneira impulsiva e irresponsável (como é próprio das mulheres na
compreensão patriarcal). Trata-se de grupos e organizações da sociedade civil
que se manifestaram em defesa das professoras. Não me parece próprio de um
governo popular eleito e apoiado, inclusive, por muitas pessoas que fazem parte
dessas organizações, que se emita tais juízos e não haja uma aberta e honesta
discussão sobre as questões em tela.
Esse é o desafio: democratizar e horizontalizar as relações
– no partido e no governo, falar com a população de maneira clara e
transparente sobre as decisões tomadas e, mais do que isso, criar e fortalecer
espaços de participação que façam com que as decisões tomadas sejam
efetivamente construídas coletivamente e não por alguns dirigentes e representantes
(ainda que eleitos para funções específicas). É isso que o feminismo propõe
para superar o patriarcado que trata mulheres e todos aqueles que não fazem
parte do seleto grupo de confiança do patriarca de forma infantilizada e como
se fossem incapazes de entender e decidir sobre as grandes questões de nosso
tempo.
A pergunta e os desafios não são colocados apenas para José,
embora como líder do partido e do governo ele tenha grande responsabilidade
pelo rumo que as coisas tomarão. Além disso, as mesmas questões colocadas sobre
a conjuntura municipal poderiam ser extrapoladas para se pensar a conjuntura
nacional e mundial. Mas se não formos capazes de resolver essas questões no
nosso cotidiano mais próximo dificilmente poderemos intervir nos processos mais
amplos que se colocam à nossa frente de modo imediato como, por exemplo, as
eleições que de outubro 2018 – ou mesmo as que nos esperam localmente, em 2020.
Temos a tarefa de lidar com as perguntas mais difíceis (e que, muitas vezes,
evitamos) e a possibilidade de encontrar respostas que nos ajudem a sair da
situação difícil em que nos encontramos – para que as ameaças de tempos ainda
mais difíceis não se materializem. É um tempo de resistência, mas também é um
tempo de coragem e ousadia.
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