Estamos todas cansadas. Sobrecarga de trabalho. Superexposição a múltiplas fontes e formas de informação. Energias investidas em processos frustrantes de supostos diálogos e construção de acordos coletivos que são sistematicamente ignorados e relativizados. Tudo o que queremos é um pouco de paz.
A ideia de polarização radical apresentada como um
diagnóstico cabal das formas de relação política em seu sentido mais amplo, que
envolve desde as relações cotidianas mais imediatas até as estruturas
institucionais mais globais, inocula a percepção de que a única possibilidade
de paz é a ausência de conflito. Aceitar, acolher, respeitar e, se for
necessário, ignorar e abrir mão, são as receitas para uma convivência
considerada harmoniosa e reconciliada. Questionar, erguer a voz, indignar-se e
inflamar-se são imediatamente lidos como sinais de radicalismo polarizado, como
se todas as manifestações não fossem marcadas por contextos e lugares
particulares. Fala mansa e gestos contidos seriam o antídoto civilizatório
contra a barbárie dos discursos e práticas violentas e de ódio de lado a lado.
Tudo farinha do mesmo saco.
Não pretendo negar a presença contundente dos reacionarismos
conservadores fundamentalistas que marcam a realidade contemporânea, muito
menos seus impactos nefastos naquilo que se tem chamado de “democracia”, na
garantia de diretos fundamentais e nos tímidos avanços e conquistas de maiorias
dominadas, oprimidas, marginalizadas e excluídas. A relação com esses grupos e
seus discursos, em princípio, nem poderia ser considerada “conflito”, uma vez
que, via de regra, não há o mínimo reconhecimento da legitimidade de uma das
partes: aquela que é negada em sua dignidade mais fundamental em nome de uma
verdade que não reconhece a sua existência. Conflito é outra coisa.
A ideia de polarização política, por outro lado, legitima
justamente a possibilidade de que determinados atores e grupos sociais (um dos
polos assumidos) possa construir a sua agenda a partir da negação das
experiências de outros atores e grupos sociais (o outro polo): mulheres
incapazes de decidir sobre o seu próprio corpo; grupos étnico-raciais inferiores
ou menos desenvolvidos; pessoas empobrecidas inadequadas para os sistemas
econômicos, culturalmente ignorantes e socialmente ingênuas ou infantis. A aceitação
da premissa de que esses dois polos existem, são igualmente legítimos e
explicam a totalidade do contexto político e das relações sociais jamais terá
como saída possível o diálogo como resolução de conflitos, mas garantirá a
permanência da ameaça (e da realidade) de apagamento e genocídio de um desses
polos – e sabemos muito bem qual é.
Não é a essa ideia de conflito vendida como polarização a
que me refiro aqui e há tantas outras coisas para dizer e pensar sobre isso. Me
pre/ocupa o que estou chamando de síndrome da evitação de conflito quando há,
pelo menos, um “reconhecimento formal” da legitimidade e do direito à
existência (física e intelectual) das partes envolvidas em relações
estabelecidas em distintos espaços e contextos. E é justamente no
“reconhecimento formal” que reside a minha pre/ocupação, uma vez que tenho a
sensação de que a incapacidade de lidar e resolver os conflitos esteja na
formalidade desse reconhecimento e no seu não reconhecimento de facto,
gerando a síndrome da evitação e aproximando certos atores e grupos mais da
banda reacionária conservadora fundamentalista do que de práticas e relações
efetivamente democráticas e participativas.
Utilizo alguns exemplos da minha própria trajetória e
experiência. O tema da “homossexualidade” (nem falemos em diversidade sexual e
de gênero) tem sido (e continua sendo) como um fator de conflito e divisão em
muitas igrejas cristãs. Em nome da “evitação” do conflito e suas consequências
(possíveis divisões) o tema é silenciado e/ou postergado como algo menos
relevante e que “não deveria nos dividir”. Ora, o não reconhecimento da
existência de pessoas LGBTQIAPN+ como parte e participantes efetivas das comunidades
de fé já é uma divisão em que um determinado grupo (com suas vivências e formas
de ser, pensar e agir no mundo) é silenciado, marginalizado e excluído em nome
da harmonia e conciliação entendida como ausência de conflito. O conflito só é
evitado para parcela dessa forma de organização social chamada “Igreja”.
A realidade de mulheres e sua participação na vida política,
acadêmica e religiosa funciona da mesma forma. Suas presenças, suas reivindicações
e suas formas de expressão são muito facilmente consideradas como geradoras de
conflito e perturbação da ordem quando não se comportam como “homens
honorários”. Divisão sexual do trabalho, direitos sexuais e direitos
reprodutivos podem até ser “acomodados” desde que não perturbem a ordem vigente
e a forma de fazeção das coisas como elas são. As perspectivas teóricas e
metodológicas que emergem da reflexão crítica e sistemática (para usar expressões
machocêntricas reconhecíveis), quando muito, são apenas percebidas como
excentricidades aplicáveis a situações muito particulares sem relação com os
Estatutos Teóricos e Epistemológicos – da política, da ciência e da religião.
Numa situação de conflito, são expurgadas por sua suposta impureza, superficialidade
e ausência de lógica. Tristes, loucas ou más.
O mesmo acontece em qualquer situação em que se discute
cotas sociais e étnico-raciais. Todas as “boas vontades” parecem sucumbir diante
na necessidade de preservar o “mérito” e a “qualidade”, ambos muito bem
definidos a partir de parâmetros de classe e raça, ambas categorias inventadas
justamente para classificar e hierarquizar. A ideia de que podem existir outros
“méritos” e outras “qualidades” para além daquelas reconhecidas pelos sistemas
dominantes e hegemônicos passa longe de ser considerada. Também é importante
não ferir “sensibilidades” introduzindo certas “estranhezas” e modos distintos no
fazer político, religioso e acadêmico. O conflito se instaura e à custa de sua
evitação aparecem discursos que apelam à paciência, à compreensão, à discrição e
moderação.
Ou seja, aquilo que de certa forma permitiu que houvesse
transformações sociais – a raiva, a indignação, a luta apaixonada, o
questionamento e a perturbação da ordem – voltam a ser vistos como uma forma
não sofisticada de se colocar nos debates e discussões em relação. Voltam a ser
consideradas “exagero” de quem supostamente conseguiu um lugar à mesa que tem
sua métrica e estética definidas e não deve ser tornada “zona de conflito”. Mais
do que isso, o suposto “exagero” ou “insistência” mascara a própria ausência de
possibilidade de escuta e diálogo real, uma vez que a simples discordância e
argumentação passa a ser entendida como geradora de conflitos resultante de uma certa irracionalidade assumida.
Além de ser frustrante, cansativo e demandar energias que
poderiam ser empregadas em outras ações que nos permitissem avançar nas pautas
democráticas e de direitos, entendo que ao reafirmar os poderes historicamente
constituídos de forma hegemônica (sustentadas no classismo, no racismo e no
sexismo) a síndrome da evitação do conflito reforça a ideia da polarização que
superficialmente coloca todos os atores e grupos sociais no mesmo nível. Os
grupos reacionários conservadores fundamentalistas que interditam qualquer
possibilidade de diálogo e, por isso, estão para além do conflito, se alimentam
e se fortalecem justamente dessa evitação que impede os diálogos programáticos necessários
para a construção de projetos alternativos viáveis. Ao sequestrarem e falsearem
a justa raiva e indignação como estratégias políticas e teóricas dos grupos
subalternizados (inclusive se colocando em seu lugar como “os novos
perseguidos”), reforçam a cultura do classismo, do racismo e do sexismo que
ainda está tão presente nos espaços que se julgam mais democráticos e não
violentos nos quais estamos inseridas.
Nos tornamos revolucionárias, feministas e antirracistas nos
nossos processos de sobrevivência cotidiana, envolvimento nas lutas coletivas e
muito estudo e reflexão crítica. Seja por comodidade ou por preguiça de
percorrer esses caminhos, quem padece da síndrome da evitação do conflito
não permite que
essas questões assumam o espaço e a força necessárias para além do
reconhecimento formal. Estão atravancando o caminho e impedem o debate
necessário com suas pseudoverdades gerais e universais. Na fila do cansaço, nós
chegamos primeiro. O conflito tem sido o nosso estado permanente e nossa fonte
de alguma esperança, “de gente que se recusa a aceitar a paz dos fortes e
poderosos” (Nancy Cardoso).
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