Uma carta – ou sobre como quase vir a ser


Suponha que uma carta tenha sido escrita em algum momento e fosse enviada a uma instância superior atacando seus direitos humanos fundamentais e buscando interferir na sua vida pessoal, profissional e pública. Uma carta qualquer. Com remetente, endereço e destinatário.
Havia tempos em que uma carta demorava a chegar. Às vezes até se sabia o conteúdo antecipadamente, mas o prazer ou a frustração ao recebê-la, abri-la, tocá-la, tinha uma excitação especial. No mundo virtual de hoje talvez isso se transfira para os sinais eletrônicos emitidos pelos aparelhos assim que a sincronização automática atesta que “you’ve got mail”. E há formas mais sucintas e rápidas de transmitir mensagens cada vez mais telegráficas (entende?). O modelo ou o formato, na verdade, não estão em discussão aqui, pois de certa forma são relativos. O que gostaria de imaginar é a ideia de tornar-se “sujeito” de alguém que me reconheça como “objeto” de uma intervenção inserindo-me no universo linguístico de uma carta – ou de uma fofoca -, mas também na materialidade da política onde a vida é produzida e reproduzida. Como nos meus espaços de trabalho e de militância.
As cartas circulam por aí. Algumas com endereço e destinatário/a. Algumas com endereço e destinatário/a equivocado/a, ou destinadas e endereçadas equivocadamente. Há cartas sem endereço ou destinatário/a e até mesmo anônimas – às vezes necessárias, às vezes perniciosas. Eu mesmo já fui advertido sobre o caráter epistolar de algumas de minhas cartas. Especialmente quando são “abertas”, quando refletem a ausência ou a desistência da possibilidade de diálogo. Quando todas as tentativas e possibilidades de um diálogo face a face foram esgotadas e resta jogar palavras ao vento; às fezes feitas de carne. Às vezes feitas carne.
Há cartas que chegam onde deviam chegar e outras que se perdem no caminho – das burocracias, dos lapsos, dos desencontros, da ação divina... E aqui estou eu escrevendo uma. Falando de coisas que não me disseram, refletindo sobre coisas que eu não li, discorrendo sobre coisas que nunca foram escritas. Justamente por isso, não se trata de uma resposta, mas de provocar a excitação, o prazer e a frustração, um pouco de dor e sofrimento, que emergem de uma carta que eu poderia ter recebido ou dessa que eu estou escrevendo.
Uma tal carta referindo-se a mim não seria incomum. Não que eu me ache especial o suficiente para que alguém gaste tempo escrevendo uma carta para/sobre mim. Mas é que ultimamente meu nome anda correndo em boca de Matildxs. A carta poderia pedir minha demissão sumária, me deixando desempregado. Poderia inclusive atestar uma suposta influência prejudicial e questionável de minha parte através do meu trabalho ou do meu engajamento político e solicitar a instituição de alguma instância reconhecida que proferisse uma sentença sobre o que eu digo, sobre o que eu faço, sobre o que eu sou – ou estou sendo. Embora não me surpreendesse, me machucaria – porque há certas feridas que não saram nunca, ou dificilmente. E nem seria uma estratégia tão nova e criativa assim.
O que seria mais ou menos incomum numa tal carta seria o reconhecimento de uma autoridade concedida por diploma – por exemplo, invocando meu nome precedido das potentes e respeitosas letras “Dr”. Mais incomum ainda seria o reconhecimento de que esse título vem acompanhado de uma produção intelectual fruto de muito trabalho – a ponto de ser citada e sugerida a sua refutação por um tal tribunal a ser constituído. Não tão incomum, mas ainda assim digno de nota, seria o reconhecimento da minha militância política e a sua relação com a minha produção intelectual – o que me honraria muito, pois seria uma interpretação corretíssima e à qual subscreveria. Embora me surpreendesse, eu acharia digno e o/a/s remetente/s pelo menos informado/a/s o suficiente para reconhecer a minha existência e com isso um caso a interpelar.
O silêncio é poderoso. A falta de notícias, a ausência de cartas, ou de respostas. Talvez por isso eu fale tanto – e escreva menos do que eu gostaria. É difícil romper as paredes espessas do silêncio e nem sempre as estratégias usadas são as mais eficazes. Por muito tempo minha existência tem sido negada – pelo menos em alguns espaços – e eis que nomear-me me daria o poder de existir e tornar-me agente, mesmo em espaços vigiados e censurados. O fato de não ser mencionado me mantem no limbo de quem não é digno de ser levado a sério. Uma carta, um documento, uma mensagem qualquer legível e reconhecível me tiraria desse limbo - inadvertidamente, causando uma série de consequências, talvez não previstas.
Diante de tal inusitado – ou nem tanto assim – fragmento acusatório, alguns/as se sentiriam vingados/as, deleitar-se-iam com a possibilidade da execração suprema e definitiva. Alguns/as viriam em auxílio, trocando alhos por bugalhos para me proteger da minha própria existência e suas consequências (para quem mesmo?). Apostariam, talvez, na minha competência – aquilo que já teria sido reconhecido pela própria carta e que precisamente teria afirmado a minha existência e a possibilidade de agência – mantendo o elefante branco bem no meio da sala. Como reconhecimento da minha competência (e seria falsamente humilde se não a reconhecesse eu mesmo, juntamente com minhas limitações), alguns/as usariam, corajosamente – eu reconheceria – o “deixa disso... quanto mais mexe mais... vamos fingir que isso não existiu”. Engavetariam uma possibilidade real de debate aberto e honesto – não sobre mim em particular, mas sobre tudo o que uma tal carta com destinatário específico e endereço equivocado representaria para um grupo social específico e as estruturas que mantem as instituições funcionando. Ao contrário, teriam que assumir os óbvios riscos de tal possibilidade e calcular a viabilidade de corrê-los.
Companheiros e companheiras, o problema não seria a competência ou a falta dela! Ela estaria pressuposta e justamente seria o problema com relação ao que realmente está em discussão: a sexualidade e sua capacidade contagiosa expressa através da presença física e da reconhecida militância – ou compromisso político e intelectual nessa área. A pergunta seria: faz ou não faz diferença ter um profissional homossexual assumido e militante entre os profissionais que atuam numa dada instituição. E é a essa pergunta que temos tanto medo de responder – talvez porque ainda não entendamos o seu real poder político nesse caso explicitado de transformação da realidade social. Não é justamente isso que argumentamos quando insistimos na presença física de mulheres entre nós? A competência eu já tenho, mas é só isso que me torna um profissional importante numa determinada instituição ou essa é apenas a justificativa que usamos para ficar dentro dos limites da lei e da burocracia e não nos posicionarmos politicamente? De qualquer forma, provisoriamente, eu aceitaria essa estratégia.
Na possível existência e envio de tal carta outros/as talvez corressem em meu socorro, sugeririam estratégias, possibilidades, tomariam iniciativas que ampliassem o público e a discussão e poriam em pauta o real problema. Tipo movimento social, luta, engajamento político, militância organizada. Essas coisas das quais quase nos viemos a envergonhar em nome da burocracia institucional. Outros/as, ainda, ficariam em silêncio, entre as supostas opções mais estratégicas e a possibilidade de estarem equivocadas. Haveria excitação, prazer e frustração, e um pouco de sofrimento de minha parte, mas a todos/as reconheceria o direito de pensarem e agirem segundo as suas convicções, suas informações e suas maneiras de ver o mundo em geral e a minha situação em particular – e claro que faria os meus próprios julgamentos que não sou santo, nem almejo tal nobre título a menos que venha acompanhado de pecador, para ser fiel à tradição luterana.
Se por ventura uma tal carta chegasse a ser escrita, endereçada a mim e eu fosse convidado para o diálogo, responderia. Não necessariamente com argumentos acadêmicos ou citações doutrinárias (embora também os tenha disponíveis). Responderia especialmente se esta carta fosse escrita por pessoas que eu não conheço, não sei quem são, pois me daria a oportunidade de conhecê-las, de entender suas motivações, suas histórias e o que faria com que atribuíssem a mim um poder tão grande como o de influenciar (ou persuadir?) outras pessoas, com a minha existência, com o exercício de minha profissão, com minha competência. Agradeceria, também, por me levaram a sério a ponto de chegarem a escrevê-la e pediria a chance de me conhecerem, de me olharem face a face e tentarem entender a minha própria história – pessoal, profissional, de fé.
Enquanto essa carta não vem quem escreve uma carta sou EU - a quem interessar possa. O faço porque antecipo sua chagada, com excitação, prazer e frustração, e um pouco de sofrimento, pois que a vida me endureceu para certas coisas, mas algumas feridas não cicatrizam nunca, ou dificilmente. Quando ela chegar – se é que ela chegará -, espero ter a coragem, as condições objetivas e subjetivas para me manifestar livremente e usar todos os instrumentos justos, reconhecidos e legais para me proteger se esse for o caso. E espero não estar sozinho.

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