As declarações do Papa Francisco sobre os homossexuais, como este assunto repercute dentro e fora da Igreja Católica, relação entre sexualidade e espiritualidade, juventude, diferenças de gênero e o atual papel da mulher são alguns dos temas tratados pelo teólogo André S. Musskopf em entrevista ao site do I Encontro Nacional de Juventudes e Espiritualidade Libertadora. Ele pontua alguns dos desafios que a Igreja Católica terá que enfrentar, já que está sendo impelida cada vez mais a abordar assuntos considerados polêmicos, e conversou sobre como "mudanças doutrinárias? poderão ser implantadas sem que se fira nenhum dos princípios orientadores da ética teológica católica romana.
André Musskopf ministrará a oficina sobre Espiritualidade e corpo durante o I Encontro Nacional de Juventudes e Espiritualidade Libertadora, que acontecerá de 1º a 4 de maio, em Fortaleza (CE), e está sendo organizado pela Adital e demais parceiros.
1. Senhor Musskopf, o Papa Francisco surpreendeu a comunidade católica mundial ao declarar que não julgaria os homossexuais que possuem uma vivência cristã, adotando uma postura diferente de seus antecessores. Para o senhor, essa declaração do Papa veio para aliviar a Igreja de pressões midiáticas imediatas ou representa um discurso verdadeiro de tolerância?
André:É muito difícil dizer ao certo. Mesmo que se trate de uma declaração para aliviar as pressões midiáticas, o significando e a repercussão dela estão para além do controle do Papa, da Igreja ou da própria mídia. O certo é que ela não muda, em princípio, nenhuma das regras da Igreja definida pelos seus documentos. Então, de fato, não há mudança real por parte da Igreja. Há teólogos/as que têm argumentado que algumas brechas têm sido abertas a partir do raciocínio teológico expresso em alguns documentos recentes do Vaticano, mas não vejo essa repercussão na vida cotidiana dos/as fieis, os/as quais, vão construindo seus significados muitas vezes apesar do Papa ou da Igreja. Por outro lado, a repercussão das falas do Papa, no sentido de que demonstram uma abertura tem, sem dúvida, animado muitas pessoas, especialmente aquelas ligadas à Igreja Católica Romana, e que esperam por mudanças significativas. Todos/as sabemos que não será um anúncio ou uma encíclica que determinará o respeito à diversidade sexual ou mesmo o fim da homofobia, na Igreja e na sociedade. Mudanças muito mais profundas terão que ser realizadas para que a Igreja deixe de ser uma engrenagem do atual sistema político e econômico que vitimiza pessoas, grupos e povos, e assuma o papel profético que lhe cabe. A abertura para a participação efetiva de pessoas homossexuais pode ser um dos sinais de um novo caminho, mas para que voltemos a sonhar com uma "igreja pobre? desafios muito maiores e estruturais deverão ser enfrentados.
2. Ainda em relação aos homossexuais, deve haver alguma mudança doutrinária na Igreja nos próximos anos?
André:Não conheço suficientemente a estrutura e as forças atuantes no interior da Igreja Católica Romana. Entendo que isso dependerá da capacidade de organização e pressão das comunidades que compõem a igreja, no sentido de que seja inevitável uma mudança de postura, inclusive doutrinária. A Igreja, assim como outras estruturas, geralmente reagem a qualquer força que possa ameaçar o seu lugar e o seu poder nas sociedades. É possível que se chegue à conclusão de que é melhor ceder nesse ponto para manter o poder em outros e seguir refletindo e promovendo uma determinada forma de manter as coisas como estão, como já foi o caso em muitas situações do passado e do presente. Então se encontrará formas de justificar essas "mudanças doutrinárias? sem que se fira nenhum dos princípios orientadores da ética teológica católica romana, inclusive o da infalibilidade papal, e há teologia já escrita e produzida para isso há décadas. Acessá-la é uma questão de vontade e compromisso, ou simplesmente conveniência. Por outro lado, se acreditamos no poder do Espírito Santo, devemos sempre contar com a possibilidade de que seu sopro anime não apenas os doutores da lei, mas principalmente as comunidades e que elas, fortalecidas por esse Espírito promovam as verdadeiras mudanças necessárias na vida da igreja, ali onde ela acontece, no bairro, na vila, embaixo da árvore, ou até mesmo em igrejas e catedrais. Por isso oramos.
3. "Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne.? Gênesis 2:24. Durante muito tempo nosso corpo material foi entendido como fonte de pecado, e, como tanto, negado com veemência. Atualmente, como é entendida e estudada esta relação entre sexualidade e espiritualidade?
André:Há muitas vertentes e tentar situá-las e definir suas origens e seus alcances é sempre um empreendimento inglório, especialmente num espaço reduzido como esse. Sem dúvida as tradições do passado nos ajudam e são fundamentais como parte da elaboração de quem somos e quem queremos ser hoje. Não há, no entanto, fundamento ético mais importante do que as nossas próprias relações, experiências e qual o sentido e valor que atribuiremos a elas hoje. Essa é a tarefa de cada nova geração, que tem a incumbência e a possibilidade de ler os sinais de seu tempo, corrigir erros do passado e apontar novos caminhos para quem vem depois. A ideia de pecaminosidade ligada à materialidade do corpo (fundamentalmente na sua dimensão erótica, afetiva e sexual) sem dúvida se deve à incorporação de algumas questões filosóficas gregas no pensamento cristão dos primeiros séculos. Haverá quem discuta isso, quem dirá que a culpa não é dos gregos, que essas questões podem ser biblicamente comprovadas, que as leituras feitas por alguns teólogos na história da igreja é que nos levou para esse caminho. A fragmentação do ser humano (em corpo e alma/razão, por exemplo) desempenha um papel importante na criação dessa dicotomia entre o que é bom (alma/razão) e ruim (corpo), sendo que o primeiro deve controlar o segundo para a possibilidade da virtude. As consequências são auto evidentes. Este tipo de argumentação continua viva e forte. Mas, além dessas, outras linhas de estudo e pesquisa tem desenvolvido propostas interessantes para romper com a dita dicotomia, olhar para as pessoas e suas relações de maneira mais integral, entendendo que sexualidade e espiritualidade estão intrinsecamente conectadas. A partir da Teoria e Teologia Queer (Indecente) por exemplo, argumenta-se que a sexualidade (entendida em sua forma mais ampla, no sentido daquilo que motiva e interliga as nossas relações) é um elemento fundante para entender as formas como construímos nossas relações, nossas formas de organização social e nossas instituições. Nesse sentido, relações amorosas e eróticas que promovem o encontro livre e incondicional expressam da maneira mais profunda a nossa espiritualidade e aquilo que podemos chamar de transcendência (que em seu sentido corrente é entendida como algo exterior ao ser humano e à vida em geral, mas que pode ser compreendido como a força vital que nos aproxima, nos entrelaça e faz com que, em nossas relações ? com Deus, com as outras pessoas e com todo o cosmos ? sejam boas), criando condições de vida sustentáveis, responsáveis e prazerosas para toda a criação.
4. "E da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão.? Gênesis 2:22 Por que a Criação nos fez macho e fêmea? Como a Igreja entende as diferenças de gênero? E o que não sua opinião pode ser mudado?
André:Algumas perguntas não foram feitas para serem respondidas, mas permanecem mistério. Sem entrar na discussão exegética e hermenêutica do texto mencionado (sobre o qual já há muita literatura disponível), é importante lembrar que a criação não é um processo terminado. Não imagino que haveria dúvidas quanto a isso, pois seguimos criando problemas e buscando soluções das mais variadas para os mais variados desafios, basta olhar para os efeitos produzidos pela poluição, o aumento do número de veículos nas estradas e os constantes congestionamentos em todas as partes. Se bem que se poderia argumentar que os carros não faziam parte da "criação em seu estado original? (ou mesmo as estradas), dificilmente alguém diria que muitas das coisas das quais dispomos hoje para viver (distribuídas de maneira desigual, é importante lembrar), os elementos culturalmente "criados?, não fazem parte da "criação? de Deus. Assim, também é possível imaginar que em outras áreas, como nas relações de gênero, as coisas mudam. Particularmente no que diz respeito às questões de gênero, as evidências de mudança são bastante fortes para afirmar que, desde a criação (seja lá como se entenda esse ato ou processo), houve mudanças significativas com relação a essas questões. A forma como se organizavam e o papel das mulheres no movimento de Jesus (antes e depois de sua morte) levantadas pela exegese feminista já são suficientes para demonstrar isso. Do ponto de vista da corporeidade, também há evidências suficientes para, primeiro, perceber que as concepções sobre o que é macho e fêmea mudaram ao longo da história, e, segundo, de que talvez essa divisão não faça justiça à diversidade de formas de constituição bio-psico-social existentes na história e na realidade contemporânea. Não há homem nem mulher (Gálatas 3.28). Como as doutrinas, dogmas e teologias construídas ao longo dos séculos (em sua maioria, pelo menos a maioria reconhecida, escrita por homens norte-atlânticos) foram desenvolvidas a partir desse dualismo originário (do qual derivam todos os outros), as igrejas seguem tentando "encaixar? todas as pessoas dentro desses modelos (moldes) disponíveis e que servem à manutenção das estruturas que privilegiam um determinado grupo de pessoas. Algumas questões, como o lugar e o papel da mulher, e mesmo mudanças na compreensão da masculinidade, já estão sendo incorporadas em algumas igrejas. No geral, no entanto, trata-se apenas de maquiar com uma imagem supostamente nova uma estrutura velha e que não responde mais aos anseios e às necessidades das pessoas no mundo atual, e nem à vontade de Deus para esse mundo. Afinal, não me parece plausível defender, justificar ou silenciar, com base em argumentos bíblico-teológicos, a permanente e crescente violência praticada contra pessoas pobres, em sua maioria, mulheres, negras e travestis. A mudança precisa ser processada nos fundamentos, lá onde se sustentam práticas violentas de toda ordem (inclusive contra o meio-ambiente), incluindo nossas imagens de Deus, nossa forma de entender Jesus Cristo (cristologia), nossas formas de organização da igreja (eclesiologia), nossas formas de entender o ser humano (antropologia), nossas formas de entender aquilo que comumente chamamos de salvação ? ou a nossa razão de ser (escatologia), entre outras.
5. "Não permito, porém, que a mulher ensine, nem use de autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio.? 1 Timóteo 2:12 Diversas passagens bíblicas colocam a mulher em um patamar inferior ao homem, indo de encontro às ideias feministas que procuram igualar os sexos em direitos e obrigações. Para o Senhor, em quais termos a independência feminina representa um avanço para a sociedade? O que o senhor espera que a Igreja faça em relação a uma maior valorização da mulher?
O reconhecimento do papel fundamental que desempenham as mulheres (e do qual muitas foram e são alijadas por muito tempo) é parte imprescindível de nossa missão enquanto pessoas cristãs hoje e não se trata apenas de um avanço, mas de uma necessidade primordial cuja materialização pode ser considerada cronologicamente tardia (especialmente porque não há nada que justifique sua inferiorização, privação ou qualquer outra forma de opressão, ontem ou hoje). Como protestante, sou testemunha das formas ardilosas através das quais se busca mascarar uma suposta igualdade ou "valorização? das mulheres, mesmo quando se mantém exigências absurdas para que elas possam participar "do mundo dos homens? (estando aí incluída a famosa "tripla jornada de trabalho?). A simples enunciação de uma suposta igualdade, ou mesmo sua materialização através de algumas práticas, não deixam de revelar a quem olha atentamente que a valorização das mulheres como seres humanos integrais, criadas à imagem e semelhança de Deus, está longe de ser concretizada. Para tanto, será necessário que disponham das condições objetivas e subjetivas de construírem não apenas suas identidades de maneira livre e independente, mas também poderem colocar todo o seu potencial a serviço da construção de sociedades mais justas para todas as pessoas, em resposta ao chamado de fé e sua vocação. Eu espero que as igrejas tenham a coragem e a honestidade evangélicas para compreender isso e criar mecanismos concretos e efetivos para que isso se materialize no cotidiano da vida das mulheres e das instituições. Isso passa pelo acesso à formação, pela valorização de saberes considerados subalternos, pela renovação das formas de organização e exercício de poder em todos os níveis, garantindo a participação ativa de todos e todas em todas as decisões.
6. Para o senhor, falar sobre sexualidade (tocar no assunto) entre os jovens ajuda a combater ou incentiva a sexualidade precoce? Como a Escola, o Estado, a Igreja e a Sociedade devem agir diante dos problemas da sexualidade humana?
Tudo depende de o que se entende por sexualidade e o que se entende por precoce. De qualquer forma, não me parece que o "problema? resida no "falar?. Desde a minha experiência, por exemplo (e pelo que conheço de modo geral), a vivência da sexualidade (sem necessariamente referir-me a atos sexuais completos, mas principalmente a brincadeiras sexuais) ocorre muito antes de qualquer fala a respeito por parte da Escola, Estado ou Igreja, mas principalmente pelas relações estabelecidas entre adolescentes e jovens e pela curiosidade despertada em seus próprios corpos. Não deixaria de reconhecer, sem dúvida, que há hoje uma interferência maior por parte dos meios de comunicação e de acesso à informação que podem disponibilizar respostas para perguntas que ainda nem foram feitas, ou mesmo oferecer modelos que nem sempre refletem uma forma saudável de vivência da sexualidade. Nesse caso, o "falar sobre? (na família, na escola, nas políticas públicas, na igreja) teria justamente o papel de evitar a disseminação de compreensões equivocadas (leia-se violentas, exploradoras, desprotegidas, desrespeitosas, impositivas, violadoras etc.). Os problemas no campo da sexualidade residem precisamente no fato de não falar e, quando se fala, usar fórmulas e doutrinas que, ao invés de promoverem uma sexualidade livre e responsável, nesse sentido prazerosa e justa (ver Mary Hunt, Just Good Sex), acabam por repetir e impor padrões que vão criar problemas para as pessoas no campo da sexualidade. A questão de gênero é apenas uma delas. Enquanto se ensinar que mulheres são inferiores aos homens, que devem ser dominadas, que sua palavra não tem valor, que sua função é servir aos outros, não haverá sexualidade saudável possível seja qual idade for. Michel Foucault já explicitou de maneira clara como a paranoia e fixação cristã ocidental com a sexualidade, que por um lado pressupõe silenciar o debate aberto e honesto sobre sexualidade e por outro perscruta a sexualidade em seus meandros mais íntimos nos confessionários, é a maior responsável pelos "problemas da sexualidade humana?. Outra vez, a honestidade e a coragem evangélica de tratar essa temática estando aberto/a para as múltiplas formas de sua prática e vivência é a única forma de nossas instituições (Família, Escola, Estado e Igreja) responderem a esses desafios sendo fieis ao Evangelho.
7. Quais suas expectativas para o I Encontro Nacional de Juventudes e Espiritualidade Libertadora?
Espero que seja uma oportunidade para visibilizar as múltiplas juventudes, seus jeitos, suas utopias e seus projetos de vida, igreja e sociedade. O sucesso dependerá justamente da capacidade de deixar os/as jovens falarem e se expressarem, ouvir atentamente o que têm a dizer, e oferecer o menos possível regras e receituários. Se a Teologia da Libertação nos ensinou algo foi isso: a verdadeira força libertadora que vem de Deus se manifesta no povo organizado, consciente dos desafios a serem enfrentados e com estratégias flexíveis o suficiente para não se tornarem autoritárias ou impositivas. A nós, que participamos como facilitadores e facilitadoras, cabe a simples e difícil tarefa de ajudar as juventudes a articular suas questões e encontrar soluções viáveis para elas, colocar à disposição os conhecimentos que fomos construindo na caminhada e acompanha-las nos caminhos de luta pela transformação dessa sociedade que desumaniza e esvazia a presença de Deus conosco. Qualquer forma de estrelismo e tietagem apenas reforçarão a ideia de que as respostas venham de algum lugar externo e privilegiado, desmobilizando a real força que vem das juventudes que entende que a espiritualidade precisa do horizonte da libertação para encarnar-se em suas vidas.
Fonte: http://www.espiritualidade2014.com.br/noticia.asp?cod=9
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