Eu tenho fé!

Esse não é um tratado sobre fé ou qualquer outro tema teológico - embora haja vasta literatura sobre o tema sob as mais diversas perspectivas e seu significado não seja evidente. Trata-se, muito mais, de uma forma de pautar questões fundamentais para a sociedade brasileira no que diz respeito aos Direitos LGBT (leia-se direitos humanos e constitucionais) e à necessidade de aprofundamento da discussão sobre a laicidade do Estado. Mais ainda, de pautar essas temáticas no contexto das próprias igrejas e religiões – especialmente daquelas pessoas e instituições que se pressupõe autorizadas a emitir juízos pretensamente universais, sagrados e definitivos, particularmente no âmbito do Cristianismo, mas de todas as religiões.
A aprovação recente do Projeto de Lei que “livra templos e igrejas de serem enquadrados no crime de discriminação se vetarem a presença de ‘cidadãos que violem seus valores, doutrinas, crenças e liturgias” pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e das Deputadas levanta novamente o debate sobre a relação entre os Direitos LGBT e as igrejas/religiões. Embora o artigo da Lei 7.716 que o Projeto de Lei pretende alterar não faça referência (ainda) a identidade de gênero e orientação sexual (objeto de outro projeto, o PLC 122), a intenção clara da proposição é de caráter religioso, segundo declaração do próprio propositor: "Deve-se a devida atenção ao fato da prática homossexual ser descrita em muitas doutrinas religiosas como uma conduta em desacordo com suas crenças”.
A argumentação para essa iniciativa também se justifica, afinal "As organizações religiosas têm reconhecido direito de definir regras próprias de funcionamento e inclusive elencar condutas morais e sociais que devem ser seguidas por seus membros”. Esse é o tema que precisa ser discutido do ponto de vista da laicidade do Estado e do lugar das religiões nesse Estado. As religiões têm sim garantido o direito a inúmeros privilégios, como isenção tributária e outros benefícios econômicos e políticos. Aliás, “religiões” é uma generalização imprecisa nesse caso, considerando que nem todas as práticas e/ou tradições religiosas são reconhecidas pelo Estado como “religião”. Os critérios para tal reconhecimento seguem prescrições bastante particulares que precisam ser discutidas e redefinidas.
Fica evidente que a alteração da lei não necessariamente “beneficia” todas as religiões, pois nem todas as práticas e tradições são reconhecidas dessa forma. Somente algumas têm esse “privilégio”. Por outro lado, há que se perguntar sobre a própria prerrogativa das instituições religiosas em decidir sobre quem tem acesso ou não a seus espaços e atividades, uma vez que são “privilegiadas” pelos já referidos benefícios estatais, sem contar os casos em que há subvenção direta por parte do Estado. Isso, em tese, as torna instituições de utilidade pública, o próprio argumento que garante os “privilégios”. Nesse caso, se são instituições subvencionadas pelo Estado (via privilégios tributários ou repasse de recursos), devem estar sob as leis desse mesmo Estado, inclusive no que diz respeito aos direitos garantidos a seus cidadãos e suas cidadãs. Não seria irônico que as pessoas LGBT contribuam financeiramente para a manutenção de instituições que objetivamente tem a autorização para discriminá-las e excluí-las de suas práticas e espaços? Eis uma discussão e uma luta a ser travada no campo do direito público, civil e laico.
Mas isso não exclui a possibilidade e a necessidade de questionar tais discursos e práticos no campo das próprias religiões. Como bem lembra o deputado propositor da alteração da lei, a “prática homossexual [é] descrita em muitas doutrinas religiosas”. Isso significa nem TODAS as doutrinas religiosas e nem A TOTALIDADE de qualquer instituição ou grupo religioso. Nem mesmo qualquer líder, teólogo/a ou igreja cristã pode arrogar-se o direito de definir e pretender-se portador da posição derradeira nesse ou em qualquer outro tema ou falar em nome da totalidade de cristãos e cristãs. Isso feriria o princípio da liberdade religiosa, também garantido constitucionalmente, e que se manifesta justamente pela pluralidade e diversidade. As igrejas e religiões também são espaços em disputa e poder, como atestam suas próprias trajetórias históricas e sempre há vozes e práticas de resistência a imposições dogmáticas absolutistas.
Pessoas LGBT são cidadãs desse país, pessoas de fé, frequentam espaços e participam de atividades religiosas. Por isso, a luta pela cidadania acontece na arena pública através dos movimentos sociais e práticas democráticas, mas também no seio das instituições religiosas através de grupos organizados e construções teológicas libertadoras.

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