Deus está no meio deles e delas - Algumas coisas que tenho visto e aprendido com o Movimento #naruasoleo e a ação #ocupapraca
Acabo de chegar da praça em frente à Câmara de Vereadores/as
de São Leopoldo, ocupada por manifestantes desde sexta-feira, dia 05 de julho,
depois de serem removidos/as com um mandado de reintegração de posse das
dependências da Câmara ocupada no dia anterior. Havia um grupo debatendo
questões relativas ao sistema de saúde pública, estudando e se preparando para
a audiência pública proposta sobre a temática (ainda não aceita pela Câmara),
pessoas preparando a comida, outras conversando sobre outros temas e questões
(mais ou menos pessoais e/ou coletivas), outras preparando o ato previsto para
amanhã (18 de julho, quinta-feira) às 18h – novo horário das sessões da Câmara,
alterado por conta do rigoroso inverno gaúcho (?) no dia de ontem – Missa de
Sétimo Dia da Democracia (https://www.facebook.com/events/148896308640654/).
O ato marcará o sétimo dia depois dos/as manifestantes terem sido impedidos/as
de entrar na Câmara sob a alegação de que teriam sido distribuídas senhas que
nunca foram vistas e pela lotação esgotada do plenário (pelo menos com a metade
dos lugares vagos de onde se podia ver por entre frestas das cortinas fechadas,
sendo a outra metade ocupada por empregados/as do governo municipal contratados/as
através de Cargo em Comissão que entraram pela porta dos fundos da Câmara). Já
fiz um relato sobre minha experiência nesse dia (http://www.andremusskopf.blogspot.com.br/2013/07/vagabundo-baderneiro-e-criminoso-quando.html)
e basta reafirmar a forma brutal como manifestantes foram agredidos/as física e
moralmente pelas forças policiais a mando das autoridades locais ao praticarem
o ato constitucional de desobediência civil pacífica, impedindo que pessoas sem
a dita “senha” entrassem à revelia da mesma ordem que impedia os/as manifestantes
de participar da sessão (aquela em que foi aprovada a reforma administrativa da
Prefeitura de São Leopoldo – uma das pautas propostas pelo movimento para
discussão em audiência pública). Não, nós não tentamos forçar a entrada e se
tivéssemos, estaríamos dentro do direito garantido constitucionalmente e pelo Regimento
da Câmara que garante que as sessões sejam abertas e públicas (Art. 5º parágrafo 4º
- As sessões da Câmara serão públicas).
No dia 11 de julho, Dia Nacional de Lutas, fui pela primeira
vez ao acampamento na praça. Antes disso, tinha participado de duas
manifestações que percorreram ruas de São Leopoldo – uma pautando as questões
do sistema público de saúde e outra o transporte público. Meu aprendizado já
começou aí. Apesar de me sentir um pouco estranho carregando uma das poucas
bandeiras (em sentido literal) visíveis na manifestação (uma enorme bandeira
com as cores do arco-íris – símbolo do Movimento LGBT), fui saudado por várias
pessoas e muito bem acolhido pelo grupo (o jornal, no dia seguinte, inclusive
noticiou "Com bandeiras do movimento gay" – não sei qual a intenção da reportagem de multiplicar as bandeiras do movimento
gay – eu juro que era só eu – mas tá bom pra mim). Nas palavras de ordem (sim,
elas ainda existem) declarações contra a homofobia, o machismo e o racismo, e
também alguns cartazes fazendo referência a esse tema/causa que me é tão caro.
Manifestação de rua exige muita técnica, organização e improviso. O roteiro não
foi divulgado e as ações foram sendo realizadas a partir de uma análise das
condições (inclusive de segurança) que facilitavam ou dificultavam o previsto.
Decisões rápidas e coordenadas com resultado bastante efetivo. (me abstenho de
dar exemplos mais concretos sobre os mecanismos usados para não comprometer as
estratégias e formas de organização do movimento). Colocar cartazes em lugares
estratégicos, dialogar com policiais que acompanhavam a manifestação, parar em
pontos estratégicos e sentar no chão (“se eu não sento no busão eu vou me
sentar no chão”), chamar as pessoas que acompanhavam dos prédios a piscarem as
luzes em sinal de apoio – “quem apoia pisca a luz” (em muitos casos respondido)
- foram algumas formas concretas de materialização das ideias do manifesto e
que foram mudando na medida em que o grupo ia se deslocando pela cidade e
diversas pessoas iam sugerindo formas novas de realizar a ação (algumas com
resultado efetivo, outras nem tanto, experimentando).
Mas quero falar do acampamento/ocupação. Naquele 11 de julho
o que encontrei foram algumas pessoas sentadas, conversando, fazendo almoço.
Meio intrometido fui perguntando como as coisas estavam, o que estava acontecendo,
quais eram os planos. Em quanto isso, o almoço ficou pronto (arroz, feijão e
carne feitas num fogão de uma boca), foi feito o convite geral para que as
pessoas se servissem, lembrando que não tinha muita carne e que para que
todos/as comessem ninguém deveria pegar muito. Chegou mais gente e parece que
fizeram mais comida e o povo foi comendo enquanto se organizava para as
atividades da tarde. Reparei na disposição das barracas, nas técnicas usadas
para sua montagem (inclusive prevendo chuva), na existência de lixos
improvisados com latões com as inscrições “orgânico” e “não-orgânico”, cadeiras
de praia para as pessoas sentarem, outros bancos e utensílios feitos com
materiais disponíveis. Todo mundo que quis comeu (com direito a elogios) e
soube que a comida era comprada a partir de um caixa comum (para o qual cada um
contribuía com o que tinha e podia) ou doações feitas por pessoas da comunidade
e moradores/as de rua que circulavam no acampamento/ocupação. Quando cheguei,
apesar de um número razoável de pessoas, achei que eram poucos/as e de repente
foi chegando mais gente, pessoas que estavam trabalhando e/ou estudando, que
tinham ido pra casa dormir e tomar banho porque tinham ficado responsáveis pela
segurança na noite anterior, pessoas que vinham apoiar o movimento e participar
das discussões.
O acampamento/ocupação escolhia, em assembleia,
regularmente, comissões responsáveis pelas várias tarefas definidas de comum
acordo entre os/as manifestantes. De repente tinha gente varrendo, fazendo
cartazes, preparando ofícios, postando notícias, organizando as barracas,
discutindo questões cotidianas como lidar com os/as filhos/as nesse período, a
situação de saúde da senhora que tossia muito, ou questões mais gerais e
teóricas sobre como mudar o mundo, análise da conjuntura, a paz e a justiça
universal. Depois disso uma assembleia geral para acordar as atividades da
tarde (discussões em grupo sobre as pautas do movimento) e a mobilização para a
noite (quando haveria sessão da Câmara). Os grupos foram interrompidos, o
presidente da Câmara decretou a proibição da entrada de manifestantes impondo
um sistema de senhas (já mencionado), o movimento decidiu e os/as manifestantes
fizeram cordões humanos (com muitas mulheres presentes!) isolando as entradas
da Câmara, a Guarda Municipal chegou, a Brigada Militar chegou, e houve toda a
repressão violenta (na qual fui atingido por spray de pimenta nos olhos e
outros/as tiveram ferimentos e escoriações em várias partes do corpo).
Continuamos com nossos cantos, palavras de ordem e falas (a essa altura havia
um carro de som) sobre o que estava acontecendo. Aprendi a força do poder
injusto, opressor e repressor no arder de meus olhos que jamais esquecerei,
enquanto era cuidado por várias pessoas que nem conhecia e outras que conhecia,
com suas técnicas de lidar com o diabólico spray de pimenta que me impedia de
abrir os olhos e ver qualquer coisa (passaram um óleo, eu não devia esfregar,
depois passaram um líquido branco, e aos poucos fui conseguindo abrir os
olhos). Aprendi.
Indo lá todos os dias à noite depois disso (durante a semana
depois de dar aula pela manhã no Mestrado Profissional, fazer reuniões de
orientação com estudantes e realizar atividades do Programa de Gênero e
Religião à tarde – um perfeito vagabundo como o resto do pessoal que está lá –
ou entre reuniões e preparação de aulas e atividades no final de semana),
aprendi muitas outras coisas. No domingo, debaixo de chuva e sem luz, nos
reunimos embaixo de uma lona, discutimos questões políticas sérias e profundas.
Estado, capitalismo, partidos políticos, teorias sociais e políticas, história,
movimentos sociais, casamento (ok, esse foi sugestão minha) .... Muitos outros
encontros, assembleias, reuniões, agendadas ou convocadas de última hora, com
direito à fala para todas as pessoas e encaminhamentos consensuados, sobre os
temas mais diversos e (im)pertinentes. Debates por vezes acalorados, com
posições distintas, nem sempre compatíveis, e mesmo assim negociadas e
provisoriamente consensuadas. Também negociações: com a Câmara, com entidades,
organizações, pessoas, para ganhar força, ampliar o debate, tornar viável o
projeto defendido pelo movimento (três audiências públicas: sobre a reforma
administrativa, saúde e transporte público – e quem vê parece que estão
querendo destituir os/as vereadores/as, o governo, tomar a cidade ou qualquer
outra propaganda fantasiosa de cunho fascista para fazer a população crer que
se trata de “terroristas” que colocam em perigo a ordem da cidade). Pensando
bem... A questão é que dentro de uma diversidade de pessoas, com origens e
histórias muito distintas, encontra-se a possibilidade de diálogo e de tomada
de decisões compartilhadas (no tempo que estive lá, não presenciei nenhuma
votação – usada como suprassumo de um certo tipo de democracia - que impusesse
a vontade da maioria à todos/as).
Aprendi também técnicas apuradas de sobrevivência – que a
academia e a teologia em particular não me ensinaram. Técnicas de resistência e
incidência (que não compartilho para não comprometer a segurança dos/as
manifestantes). Mas aprendi também as técnicas usadas pelos detentores do poder
como forma de opressão e exclusão. A força policial é uma delas. Outras formas
mas sutis, como encher o plenário da Câmara com empregados/as da prefeitura que
entram pela porta dos fundos, ou, mais recentemente, trazer um grupo de pessoas
(homens) que entram na Câmara um atrás do outro muito antes do horário da
sessão e aguardam nos gabinetes dos vereadores para evitar o sistema das fichas
e eventualmente aparecem na sacada com olhares intimidadores para os/as
manifestantes. Enfrentar e superar essas pedagogias da repressão requerer
reflexão e ação constantes. Por isso (me limito a apresentar esse exemplo) a produção
de cartazes e a formulação de palavras de ordem também é um processo constante,
juntando a fundamentação teórica e conceitual construída coletivamente ao longo
desses dias com os desafios concretos colocados por cada ação que tenta
reprimir o movimento, deslegitima-lo e desmobilizá-lo. Aprende-se a lidar com a
ambiguidade dos processos de luta e construção das relações (internas e
externas) e nem sempre se sai vitorioso no sentido dicotômico vitória-derrota
usado como marco explicativo das lutas sociais para destituir a luta social de
seu sentido profundo de construção permanente. Não entendem que a vitória é a
própria existência e continuidade da luta – a resistência, se quisermos – que é
a expressão mais forte de que a morte jamais vence a vida, mesmo quando a
sufoca a ponto de quase extingui-la.
Não estou indo lá ou participando dos debates e ações como
um antropólogo em busca do esquadrinhamento e classificação conceitual de quem
eles/elas são e o que fazem. Deixo essa tarefa para eles/elas. Isso não é uma
etnografia ou uma observação participante. É um relato. É uma outra forma de
tentar produzir conhecimento que seja situada na minha experiência junto com
eles/elas. Aberto a questionamentos, críticas, revisões e correções. É uma
forma (a minha forma) de tentar contribuir nesse processo que tem como fim (por
provisório que seja e fora de uma perspectiva cronológica ou milenarista)
relações mais justas, ali mesmo no acampamento/ocupação ou em qualquer lugar do
mundo. Pois o que mais (re)aprendi é a importância de ouvir, vivenciar e não
apenas tirar conclusões abstratas construídas a partir de fórmulas prontas
sobre o que é aquilo que não se está vendo, mas apenas pressupondo – mesmo que
se usem as fontes mais fidedignas e os métodos mais cientificamente
reconhecidos.
E como teólogo e pessoa de fé, não resisto a pelo menos uma
afirmação teológica sobre o que tenho visto e vivido (sem a pretensão de
rotular ou definir a experiência desse coletivo plural) – Deus está no meio
deles e delas! E está convidando: Vem pra rua!
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