Usando a antiga
e tradicional metodologia epistolar que, mesmo em termos de interconexão
eletrônica, pode ser um instrumento de diálogo e produção de conhecimento,
gostaria de responder a um texto publicado no Facebook pelo colega e amigo
Fernando Cândido. Embora o texto não tenha sido escrito para mim ou
privadamente para uma pessoa, uma vez que público, respondo assim, de maneira
particular, mas ao mesmo tempo pública e aberta com o único objetivo de seguir
construindo relações mais justas. Afinal, e nisso concordamos, pois eis que
também partilho do ambiente acadêmico, o debate teórico é sempre fundamental
para alargar nossa visão e aprofundar nossa prática.
Mas comecemos
pela prática – que é já uma opção teórica. Não é novidade que a afirmação do “orgulho”
fundamentado na definição de identidades estáticas tem sido questionada há
algum tempo. Todos/as nós do campo dos estudos queer, pós-coloniais, ou qualquer outro nome que usemos para
classificar nosso campo de reflexão – reconhecendo que todas essas
classificações são sempre reduções daquilo que realmente estamos sendo e
fazendo, portanto, idealizações ou fetiches, como bem colocas - já discutimos,
refletimos e escrevemos sobre as limitações do discurso identitário e
assimilacionista. Os processos históricos vividos nos lembram constantemente
dos riscos.
Mesmo assim,
permanecendo no campo dos processos históricos, sabemos também que a afirmação
do “orgulho” não é algo que foi construído em escritórios ou bibliotecas, mas
no enfrentamento político dos mesmos sistemas que denuncias e que também teve
respaldo teórico por parte de quem fazia a reflexão teórica junto com essa
militância. Iniciar uma reflexão sobre o “orgulho” sem considerar esses
processos e os resultados que obtiveram em termos práticos me parece ceder aos
encantos colonialistas que apagam as tradições revolucionárias para impor uma
nova metanarrativa – nesse caso a do não-direito de afirmar o orgulho de ser o
que se é – por um instante ou por quanto tempo for necessário, desejável e bom.
Nesse sentido,
seria necessário reconhecer que a afirmação do “orgulho” não é e nunca foi a
única estratégia emergida no contexto do enfrentamento político frente aos
sistemas colonizadores – das terras e dos corpos, territórios. A fluidez que
vem da prática política e da reflexão teórica, nesse caso, deveria afirmar
diferentes estratégias para diferentes contextos, sem tentar produzir um único
discurso universalizante que pretensamente daria conta de resolver todos os
problemas de todas as pessoas e instaurar uma realidade de justiça e paz – seja
ele o da afirmação do orgulho ou do direito à opacidade. Mas estes e outros,
simultanea e ambiguamente, poderiam ser acionados tendo em vista os resultados
que pretendem alcançar em cada contexto.
Do ponto de
vista da prática – que de modo algum é transparente e sem contradições –
acredito que a afirmação do orgulho ainda seja uma estratégia importante, visto
sua capacidade de mobilização e promoção de mudanças efetivas na vida das
pessoas (e mais sobre isso pode ser lido no meu próprio texto escrito para esse
dia). Como homem, branco, com formação e uma condição social que me permite
acesso a algumas regalias (mais alguns fetiches dos quais nem me orgulho
tanto), poderia também me dar ao luxo de ficar refletindo sobre o fato de que
eu sou apenas mais um ser humano, que quem eu amo ou beijo não deveria fazer
nenhuma diferença e que quero o meu direito à opacidade, aos meus mistérios e
segredos. Mas fingir que esses fetiches não determinam um sem-número de
situações nas quais me vejo envolvido todos os dias seria iludir-me e pensar
que minha individualidade e subjetividade não têm nenhuma implicação política
na realidade da qual faço parte.
Além disso, se
por um lado a busca pela verdade e pela transparência foi usada como estratégia
de colonização, o segredo e a ocultação não são menos perniciosos e opressores
(para usar um termo da sua reflexão) do que a denúncia e a visibilidade.
Afinal, tanto uma como a outra podem ser usadas para forjar relações desiguais
de poder (para usar um outro conceito). E então, outra vez, recorreríamos à
história para entender a relação entre “orgulho” (que definitivamente não se
trata de um sentimento no sentido romântico) e a “visibilidade”. O ocultamento
tem sido uma das estratégias colonizadoras mais eficientes, e “dizer a sua
palavra”, “desvelar o seu mundo” são fundamentais para a produção do conhecimento
e do enfrentamento político coletivos – quando e como a gente quiser e/ou
puder.
Surpreende,
justamente, que você afirme ser necessário inverter a lógica do opressor.
Segundo a sua lógica não seríamos todos e todas opressores/as e oprimidos/as? O
que efetivamente diferenciaria uns/as dos outros/as? E não é justamente a “afirmação
do orgulho” uma forma de inverter essa lógica que diz que deveríamos, de alguma
forma, ter vergonha? Ainda outro dia me perguntavas sobre as manifestações e
protestos se “alguém vai tomar a direção da coisa”. Não precisaríamos de
múltiplas direções? Pois a fluidez de nossos desejos e da própria realidade não
nos permitem mais uma estratégia e discuro únicos? E ainda no final de sua
reflexão falas da “não-barbárie”. Não é este um conceito altamente colonialista?
Meu amigo, o
povo que está na luta (na prática e na teoria), com todas as suas contradições
e ambiguidades, está sendo o que quer, quando quer e quando pode. Com seus
orgulhos e opacidades, quer o direito de estar sendo. Por isso, não se trata de
uma oposição fantasiosa entre orgulho/visibilidade e opacidade, mas ambas são
ferramentas para que não apenas seja garantida a diversidade – pois ela não é
uma idéia, mas um fato – mas a justiça. O respeito à diversidade – como manifestação
da justiça – só estará garantido mediante o direito à própria diversidade, para
que todos e todas efetivamente possam ser o que quiserem e quando quiserem –
visíveis em sua máxima exuberância ou opacos/as em suas múltiplas formas de não
tentar reduzir ninguém a uma única compreensão. (Aliás, repare que na citação
que usas a referência à opacidade se dá em relação ao/à outro/a e não em
relação a si mesmo/a)
Eu, por mim,
entre outras coisas, pelo menos por hoje, fico com a teoria de Cris de Madri
pronunciada na Assembleia Legislativa de Alagoas na Sessão Pública pelo Dia
Internacional do Orgulho LGBT: “Sou travesti e exigo respeitio”. Amanhã ela
pode ser o que quiser, inclusive a mesma coisa.
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