Uma das frases e cenas de que mais gosto no filme Milk – A voz da igualdade é quando ele (Milk)
tem uma vitória na Câmara dos Conselheiros garantindo-lhe poder de negociação
com o Prefeito. Pensativo, ele diz: “Um homossexual com poder... isso é
assustador”. Isso não deixa de ser verdade para qualquer espaço de atuação,
inclusive na Igreja. Há várias formas de se materializar o poder que alguém
detém ou supõe-se que detenha. Embora não seja essa a sua função, não é incomum
no senso comum ou mesmo em algumas teologias bastante questionáveis,
atribuir-se poder a alguém, preferencialmente aos homens, quando em trajes
especiais como albas, batinas, talares, camisas com gola clerical e outros
modelos com nomes mais complicados e aparências ostentatórias. O terno e a
gravata também entram nesse rol de “vestes de poder”, embora o argumento para
usá-lo ao invés de vestes litúrgicas mais tradicionais seja comumente o de se
vestir de maneira comum para justamente não reafirmar a diferença entre o
ministro (autoridade) e a comunidade (leiga). Mas e quem é que, no meio do
povo, usa terno e gravata em seu cotidiano? O fato é que, mesmo que concordemos
que a roupa, ou no caso as vestes litúrgicas, não conferem nem representam um
poder especial à pessoa no exercício de tarefas ministeriais, há um poder
simbólico que não passa despercebido.
Isso fica mais evidente quando se trata supostamente de um
“gay” e, ainda mais, “um militante da causa gay”. Um homossexual usando uma
veste litúrgica e co-celebrando um culto... isso sim é assustador! – para
algumas pessoas. É fato que para os mais em dia com as discussões teológicas
sobre ordenação ao ministério eclesiástico, ministério geral de toda pessoa
crente, culto cristão e outras questões relacionadas não há nenhum problema
teológico ou dogmático em um “gay” ou mesmo um “militante da causa gay”,
batizado e membro da Igreja co-celebrar um culto usando veste litúrgica
semelhante aos/às demais celebrantes. Afinal, a veste litúrgica tem única e
exclusivamente a função de identificar as pessoas responsáveis e ministrantes
de uma celebração litúrgica, sem lhe conferir nem poder ou status especial
diante da comunidade que compõe o corpo de Cristo, sem nenhuma distinção de mérito.
Ainda assim, mais do que a ideia a imagem de algo dessa natureza tem
aparentemente um poder simbólico sobre quem se depara com o fato de que algo
assim pode acontecer.
Alguns/as podem dizer “é assim que deve ser”; “eu sinto a
presença do Espírito Santo”; “é tão bom ver isso acontecer”; “esse é o seu
lugar”; e outros/as podem dizer que “isso é um escândalo”; que “a Igreja não
deveria permitir”; que “isso é uma falta de ética”; que é “como Renan Calheiros
estar na Comissão de Ética: é regulamentarmente correto, porém eticamente
equivocado” (será que diríamos o mesmo a respeito do Deputado Marco Feliciano
na presidência Comissão de Direitos Humanos e Minorias?). E como nossa teologia
não alcança para questionar a participação litúrgica de um gay (e militante)
num culto cristão, poderíamos sair em busca de uma outra justificativa que dê
algum alento para a assustadora imagem que essa realidade evoca – um
homossexual com poder. Invoquemos a tão abusada (e necessária) ética e teremos
uma racionalização teológica capaz de impedir o triunfo apocalíptico da
aberração final de nosso bem religioso mais precioso. Será?
Meus senhores! Até nisso uma tal teologia não alcança. Se
adentrarmos no campo da ética cristã, por exemplo, teremos que colocar as
nossas cartas na mesa. O repetir de versículos bíblicos ou a invocação do tão
caro princípio protestante sola Scriptura
é apenas um mascaramento para a falta de traquejo no campo da ética teológica.
Afinal, nenhuma ética cristã se sustentaria, começando pelas Escrituras
Hebraicas ou mesmo apelando exclusivamente para o Testamento Cristão (antes ou
depois do processo de canonização), sem o diálogo com os dois mil anos de
cristianismo e, principalmente, com os desafios colocados a cada nova geração –
ou seja, a experiência real e cotidiana de cristãos/ãs e suas experiências de
fé. Talvez mesmo os/as luteranos/as mais ortodoxos/as não exatamente
compreendam o que significa o princípio sola
Scriptura no contexto da teologia luterana (para me manter nessa linha
específica do pensamento teológico). Até mesmo aí teríamos que entrar no campo
da história da interpretação do texto bíblico e utilizar as ferramentas
disponíveis para a sua compreensão no contexto mais amplo das relações e formas
de conhecimento contemporâneas. É... dá um certo trabalho. Mas falar de ética
implica pelo menos nisso, assim dizem os currículos das instituições teológicas
por aí. E ainda assim, seria necessário discutir em que consiste a falta de
ética nesse caso específico – da expressão simbólica de um homossexual com
poder co-celebrando um culto cristão.
Se tivermos acordo sobre o que implica a participação numa
prática litúrgica (no caso um culto eucarístico) conforme descrito acima, a
falta de ética não estaria na simples participação. Como no caso de Renan
Calheiros, reconheceríamos a legitimidade regulamentar (talvez dogmática e
doutrinária) dessa participação. A falta de ética estaria, então, em algo
anterior, ou seja, no fato de ser “um gay”, “militante da causa gay”, a aceitar
tomar parte em tal evento e considerando tais condições. Mais do que isso, a
falta de ética talvez não estivesse nem no fato de “ser” um gay, mas muito mais
no fato de ser um “militante da causa gay” - e mais uma vez estamos muito mais
no campo do poder simbólico do que do poder efetivo, afinal, na prática, “um
gay”, “militante da causa”, tem pouco ou nenhum poder efetivo numa estrutura
institucional que nega a sua existência ao se negar a dialogar com e sobre a
mesma, mesmo quando emite (e nisso concordaríamos) documentos teologicamente
frágeis e politicamente irrelevantes.
Fiquemos, por ora, no campo do poder simbólico. O que há de
anti-ético, do ponto de vista da ética teológica cristã em “ser gay” e “militar
na causa gay”? Como discutido acima, no campo da discussão ética, seria
necessário muito mais do que alguns versículos bíblicos para estabelecer um
posicionamento conclusivo a esse respeito (como, aliás, nem muitas igrejas tem
feito), sem discutir o tema do ponto de vista da história (inclusive da
interpretação bíblica) e da realidade concreta de pessoas (inclusive batizadas
e membros da Igreja) no atual momento histórico. Não me parece, do que tenho
visto por aí, que exista algum posicionamento eticamente sustentável quanto ao
caráter anti-ético de ser ou militar na causa gay (dentro ou fora da igreja),
mas eu certamente estaria aberto a discutir essas questões. No caso específico
do exercício do ministério ou de funções ministeriais (como é o caso de uma
celebração litúrgica) talvez o mais assustador seja que um homossexual não se
apresenta para dita ocasião vestindo um “talar rosa”, pois muitos/as já ouviram
falar acerca de um livro que eu mesmo escrevi e onde discuto a questão de
“homossexuais e o ministério na igreja”. Embora tenham ouvido falar, se guardam
em seu imaginário e em suas fantasias a ideia de que um gay, militante,
defendesse (pelo simples fato de ser gay e militante) o uso de um dito “talar
rosa”, seguramente não leram o livro e muito menos estão em condições de fazer
julgamentos pseudo-éticos sobre a participação de um homossexual, usando vestes
litúrgicas, num culto cristão. Afinal, é muito mais assustador se um
homossexual se apresenta para essa tarefa sem a marca de sua exclusão (o talar
rosa), mas apenas como um de nós, pois assim, qualquer um de nós poderia ter a
sua sexualidade questionada. E então, já nem é mais de ética que estamos
falando.
Deve ser mesmo assustadora a imagem de um homossexual de
vestes litúrgicas co-celebrando um culto para quem se agarra e defende as
estruturas de poder (mesmo eclesiásticas) que continuam pervertendo o Evangelho
de Jesus Cristo e a Palavra de Deus. De minha parte, agradeço a Deus pelas
bênçãos e peço coragem e lucidez na caminhada. Pois mesmo quando me canso de
fazer essas conversas tendo em vista a falta de capacidade reflexiva e crítica de
alguns/as, ao fazê-lo, me relembro porque dediquei tanto da minha vida ao
estudo da teologia e como é delicioso o trabalho teológico quando se deixa Deus
atuar e nos surpreender.
São Leopoldo, 04/04/2013
Comentários
Postar um comentário