Prezado Doutor: ando impaciente com essa tal de paciência histórica


Escrevo para pedir ajuda. No fundo, eu sei que não há como me ajudar. É um caso sem solução. Mas como eu sou do tipo que apelo a todas as opções disponíveis para lidar com meus conflitos e dúvidas, vou tentar descrever um pouco de minha angústia e, escrevendo, talvez encontre algum consolo que me faça continuar lidando com a vida como ela se me apresenta.
Não sou muito de rodeios ou de medir as palavras. Sou do tipo acalorado e que tem pouca paciência para determinadas conversas e procedimentos. Já foi bem pior, eu admito. Ao longo do tempo fui tentando não levantar grandes expectativas quanto ao funcionamento eficiente dos sistemas ou à coerência das pessoas. Quando vou ao banco, por exemplo, já parto do pressuposto de que vou passar um tempo substancial lá, lidar com filas, ouvir gente reclamando da demora e xingando, não conseguir resolver o que precisava por algum detalhe burocrático, e geralmente acabo surpreendido com o fato de que, mesmo que todas essas coisas aconteçam, o meu sofrimento é menor do que poderia ter sido. Haja paciência!
Enfim... nos últimos tempos, para além dos problemas domésticos do dia-a-dia tenho me perguntado sobre questões mais existenciais como a tal da paciência histórica. Essa ideia de que as mudanças ocorrem lentamente, através de processos de avanço e recuo, e não há transformações duradouras que aconteçam do dia para a noite. Como se diz. Também se fala de conflito histórico, embate de forças, relações de poder... tudo para compreender que há que se ter uma (santa) paciência, enquanto se trabalha e luta para que as mudanças e transformações efetivamente aconteçam – estando preparados/as para o fato de que isso possa se dar de maneira diferente do que planejamos, fora do tempo imaginado e que é necessário mudar de estratégia, retomar a luta, seguir resistindo, conquistar espaços, ir comendo pela beirada, meter-se nas brechas. Ai... só de escrever isso minha paciência já quase se esgotou... mas relutante vou tentar seguir o meu raciocínio.
Quando entrei na faculdade de teologia aprendi com o feminismo e com a teologia da libertação que o pessoal é político e que é necessário fazer uma opção política clara que defenda aquelas pessoas que de alguma forma são inferiorizadas ou desumanizadas. Isso já faz uns 15 anos. De lá pra cá eu mesmo assessorei inúmeros cursos, proferi diversas palestras, escrevi vários artigos e até livros, participei de debates me envolvi e trabalhei em várias frentes. Não fiz isso sozinho, nem de maneira isolada, mas com muitos/as teólogos/as que acreditavam e defendiam as mesmas questões. Acontece que, de repente, e nem tão de repente assim, me dou conta de que toda essa discussão e luta parece ter sido feita no vácuo. Me dizem que não devo misturar questões pessoais com questões profissionais ou institucionais, me dizem que a ciência é neutra, objetiva, e que questões técnicas definem o que pode e o que não pode ser dito e quem pode e quem não pode dizer, tudo uma questão de ser capaz de preencher os requisitos – que não é dada a todo mundo do mesmo jeito (é claro! está implícito). Surpreendem-me com perguntas antigas como se fossem novas para as quais muitas respostas já foram dadas – infelizmente não pelas pessoas certas, com os títulos certos ou pedigree. Deve estar em algum jornalzinho desqualificado de alguma organização social sem relevância no mundo onde as coisas são decididas.
O que é que aconteceu nesses 15 anos (que já são muito mais do que isso) que fez com que o esforço empreendido por muitos/as em busca da transformação das relações de poder em todos os âmbitos de repente (e nem tão de repente) pareça algo absolutamente estranho àqueles que supostamente caminhavam conosco? Para não soar totalmente pessimista ou desesperançado, eu sei que muita gente foi atingida, caminhou junto e teve a sua vida transformada por aquilo que foi feito, na academia, nos partidos, nos movimentos sociais, nas comunidades de base. Mas lá na ponta da pirâmide (ainda absolutamente real) essas questões soam estranhas e as mesmas acusações e desculpas são jogadas ao vento como verdades questionadas apenas por traidores/as de quem age com a melhor das intenções. Loucos/as, histéricos/as, raivosos/as. O que aconteceu com o direito de questionar estruturas que nos limitam, nos restringem, nos afundam, reinventando as relações desiguais e perpetuando uma classe de quem detém o poder de decidir sobre os/as outros/as? O que aconteceu com nossa clareza sobre as opções políticas que fazemos e do lado de quem estamos?
Será tudo isso mais um truque da tal de paciência histórica que simplesmente temos que suportar esfregando novamente na nossa cara que as mudanças são lentas, exigem sacrifício, resistência e vigilância contínua, aquela raiva revolucionária de que tão facilmente somos acusados/as e da qual não podemos descansar correndo o risco de que o que conquistamos seja fácil e rapidamente perdido?
Na boa, doutor, tô sem paciência pra tal da paciência histórica. Quero um mundo novo amanhã. Quero novas formas de exercer o poder, novas formas de produzir conhecimento, novas formas de solucionar os problemas cotidianos das pessoas que sofrem e apenas sobrevivem. Não tô me importando muito com a renúncia do Papa ou com o conclave que vai eleger o novo; tô querendo saber o que fazer com os homossexuais que são assassinados todos os dias. Não tô prestando muita atenção aos asteroides e meteoros; tô querendo saber como é que vamos fazer para que as mulheres parem de ser espancadas, assassinadas e violentadas. Ai... não tô preocupado com um tanto de coisas que parecem ser de estrema urgência ou relevância em determinados círculos (embora tenha clareza dos impactos de muitas dessas questões na vida concreta das pessoas e a necessidade de enfrenta-las também). No máximo tô ligando pra como vamos enfrentar o machismo, o sexismo, o racismo, a homofobia, o classismo, a xenofobia... e de maneiras concretas de superá-los para além dos discursos politicamente corretos e a ingenuidade perversa de quem não entende do que estamos falando. Desculpe-me a paciência histórica, mas tô ligando mais pro pão de cada dia e o orgasmo de cada noite – ou vice-versa.
Será que há como me ajudar, doutor?

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