Escrevo porque, de alguma maneira, escrever me permite dizer
coisas que talvez serão lidas uma vez que, aparentemente, não podem ser ditas
ou ouvidas. A intermediação da página branca e dos sinais gráficos protege a
erupção de emoções insondáveis e elimina a materialidade dos corpos que se
dizem – ou pelo menos ajuda a lidar melhor com elas. Não recorro a nenhuma
teoria explicativa ou conceitos esclarecedores de possíveis distúrbios mentais
ou perturbações emotivas – na minha opinião aplicáveis em muitas situações, mas
incapazes de explicar toda e qualquer forma de pensar o tema que quase não se
ousa dizer o nome. Utilizo apenas as minhas próprias sensações e idéias,
correndo o risco de interpretações psicoterapêuticas-analistas, freudianas,
lacanianas ou descendentes de qualquer ana, porque assim escolhi construir
minha narrativa e meu pensamento. E já que pareço não ter o direito de decidir
sobre mim mesmo dentro de um conjunto de relações e vivências (uma vez que não
me vejo diante de um tema redutível a uma postura egoísta – por si só uma
avaliação redutora quando aplicada rotularmente a qualquer situação que envolva
o indizível) escolho essa forma de dizê-lo.
Não se trata de propor suicídio coletivo. Tanta e muita gente vive e convive com isso todos os dias e talvez até seja feliz – whatever that means. Por tudo que fiz e faço, também sou feliz e acredito que vivo uma vida com sentido. Mas será que tudo isso ou alguma coisa em especial poderia convencer alguém de que desistir é uma possibilidade, especialmente quando se tem clareza sobre todas essas coisas e de tudo que se fez com relação a elas? Não seria orgulho e soberba demais pensar que uma vida seja tão fundamental para o equilíbrio do cosmos? É claro que não é e é claro que ninguém pensa isso. Então o que haveria de tão indigno em simplesmente achar que esta etapa chegou ao fim? O medo que não haja uma segunda chance? E de verdade não há! Nunca.
Começo pelo nonsense.
É assim que, por motivos religiosos/filosóficos, ideológicos, psicológicos,
sociológicos, antropológicos se explica o suicídio como algo “sem sentido” –
sem “lógica”. Seria possível invocar as mesmas “logias” para justamente dar
sentido àquilo que parece desprovido de. Variáveis históricas, culturais,
políticas. A grande pergunta que paira é o que levaria alguém a querer por fim
a um processo (no caso a vida) utilizando como ferramenta aquilo que é
considerado o seu oposto temível e ameaçador (no caso a morte). A certeza de
uma outra vida (religião) ou da absoluta falta de sentido (filosofia), a ideia
de que a morte seria uma contribuição para a vida presente (ideologia), o
sofrimento absurdo e insuportável (psicologia), a sensação de invisibilidade e
aniquilação num dado contexto (sociologia e antropologia) ofereceriam
explicações para o gesto definitivo com a ressalva de que a avaliação seria
(sempre) equivocada.
Seguramente muitos/as já disseram que a morte é parte da
vida. Implícita nessa afirmação está o fato de que se trata de um processo
“natural” inerente à existência (de tudo, inclusive; não atribuível a Deus, no
entanto, a menos que aceitemos a morte de Deus, o que me parece mais uma ilusão
no seu sentido moderno). Nesse sentido, é inevitável a minha referência ao
campo de pesquisa ao qual tenho me dedicado – a sexualidade – e a defesa de que
o conceito de “natureza” tem servido para a opressão e controle dos corpos –
das pessoas, da sociedade, do mundo e de Deus (já que sou teólogo de/formação)
– e do seu direito de viver e morrer. Disse James Nelson (se não me engano) – e
também outros antes dele - que o orgasmo (para o homem) é uma pequena morte
(quando o pênis perde a ereção), e uma ereção posterior ao orgasmo a
ressurreição para a vida – a grande esperança de todas as pessoas que temem
e/ou evitam a morte. Eis o grande desespero daquele que broxa (não consegue ter
uma ereção) e talvez daqueles que tenham ejaculação precoce (não conseguem
sustentar a ereção e sucumbem sem conseguir controlar ou prolongar o ato
vital). Assim como a sexualidade, a morte não é um processo
“natural”, mesmo quando associado à velhice e perda das funções (nesse sentido
o orgasmo e os seus jeitos – pois nem todo mundo goza da mesma maneira – também
estão fora da esfera simplista da “natureza”). Se comparado às plantas, por
exemplo, poder-se-ia dizer que o grande mistério e a capacidade de lidar com a
ela (a morte) seria a possibilidade de prolongamento através da
semente/reprodução. Mas aí temos o problema “natural” da esterilidade, presente
em todos os seres vivos, animados e inanimados, tratados como um problema a ser
resolvido (a menos que utilizemos conceitos como os de energia, entendendo que
mesmo a morte não é o fim, mas uma reorganização das energias vitais –
evitaríamos a morte, mas o suicídio talvez não fosse um problema, pois seria
definitivamente nonsense).
E se nem todos os seres tiverem a necessidade de driblar a
morte (mesmo que simbolicamente) e ela for simplesmente um evento “natural” no
sentido de que acontece por motivos diversos havendo a possibilidade de
decidir-se sobre o quando e o porquê? Sabe-se também que a morte atinge pessoas
e outros seres de maneira “natural” sem que haja uma causa efetivamente “natural”:
violência, fome, desmatamento, mudança no curso de um rio, dor de amor,
racismo, sexismo, homofobia e até psicopatia. Lutamos todos os dias para
resolver esses problemas e ter um mundo capaz de ser um habitat desejável de se
viver ad eternum em estado de graça e
felicidade. Eu também sempre lutei e luto, porque acho justo.
Há ainda a tal perda de sentido, como se o sentido fosse
algo fundante, pelo menos para os seres humanos, haja visto que o instinto dos
animais não lhes dá o luxo de lidarem com problemas existenciais (e há suicídio
entre eles) e que a inércia das pedras e das árvores e das águas parecem ter
sentido apenas atribuído em função de algo que está para além delas mesmas
(menos as pedras, árvores e animais sagrados que estão fora do eixo
interpretativo de viver e morrer – são livres). Diz-se (commonsense, mas também existem as estatísticas) de que são altas
as taxas de suicídio entre jovens europeus que não vêem sentido em viver. Ter
tudo o que se deseja, não almejar nada, ter acesso a modos de vida
não-saudáveis etc. seriam responsáveis por essa falta de sentido.
Por outro lado, a falta de sentido, a meu ver, também se
expressa na tentativa ensandecida de não morrer. Hábitos saudáveis (às vezes
quase masoquistas), tratamentos estéticos, avanços tecnológicos na medicina (em
todas as áreas), cremes, pílulas, procedimentos. A doença como sinal de morte e
não viver, e o estar doente como experiência insuportável de sua possibilidade
iminente. Gasta-se a vida tentando não morrer. Até nos casos de doenças
terminais ou incuráveis (em muitos lugares) a decisão pela morte (eutanásia) é
algo impensável em nome da suposta naturalidade da vida e do morrer e da
atribuição da autoridade sobre esse processo a um ente externo, proprietário
absoluto sobre o corpo vivo e o cadáver. O sofrimento (de qualquer ordem) é
justo, necessário e purificador – o suficiente para ser suportado. Há, no
entanto, uma paz inexplicável em algumas decisões sobre a morte de si mesmo.
E se certo dia alguém acordasse e decidisse que não quer mais ter
que explicar porque seu desejo sexual majoritariamente se direciona a homens e
não mulheres? E se não quisesse ter que procurar um apartamento a seu gosto,
encontrar uma imobiliária para fazer os trâmites, preencher infindáveis formulários
(que nem entende) para conseguir financiamento e ainda ter o dinheiro para dar
de entrada e pagar as prestações? E seu não quisesse ter que contratar
telefone, internet e televisão e passar horas tentando cancelar ou explicar
porque não quer determinado produto, sem falar nos cartões de crédito e suas
faturas? E se não quisesse entender de carro, fazer revisão, pagar em prestação,
verificar óleo, encher pneu, prestar atenção nos barulhos, lidar com a buzina e
os vidros elétricos que sempre estragam, e nem quisesse pensar em trocar de
carro e toda a burocracia que isso implica (como comprar um
apartamento)? E se não quisesse ir ao supermercado, prestar atenção nos prazos de
vencimento de tudo e qualquer coisa, ter milhares de senhas para milhares de coisas?
E se não quisesse ter coisas inteligentes para dizer e escrever, ir a oficinas,
palestras, encontros, congressos, seminários, preencher currículo Lattes e
enfrentar aviões, aeroportos e escalas? E se não quisesse lidar com a estupidez
humana, a falta de delicadeza, a mentira, a fome, a violência, a discriminação,
a guerra? E se não quisesse não poder viajar de férias, visitar
lugares por puro prazer, conversar com pessoas que interessam, ver coisas que incentivam
a criatividade? E se não quisesse mais compactuar com sistemas e estruturas
viciadas que só fazem repetir ad nauseum
os mesmos modos de segregação e manutenção de poder? E seu quisesse não mais
ter que fingir que compactua com essas estruturas e sistemas para
pagar as contas, provar que é inteligente o suficiente para estar dentro tentando
sutilmente inverter a lógica e minar esse sistema? E se não quisesse mais
explicar porque acha que tanta coisa está errada e que as pessoas não estão
dispostas a encontrar formas mais saudáveis de viver e se relacionar? E seu
quisesse não ter que se submeter a todas e tantas coisas que não permitem viver
e produzir aquilo que gosta e acredita de maneira livre e excitante? E se não
quisesse lavar roupa (e comprar os produtos para lavar, depois estender, dobrar
e guardar), nem limpar a caixa de areia do gato e ter que abrir a torneira toda
vez que ele quer tomar água? E se quisesse amar e cuidar sem medida, ser
igualmente amado e cuidado, ser frágil e não enfrentar todos os leões todos os
dias provando que é mais forte do que eles? E se mesmo a idéia de largar tudo e
fazer teatro de rua ou entrar para um movimento guerrilheiro parecessem penosos
demais? Não se trata de propor suicídio coletivo. Tanta e muita gente vive e convive com isso todos os dias e talvez até seja feliz – whatever that means. Por tudo que fiz e faço, também sou feliz e acredito que vivo uma vida com sentido. Mas será que tudo isso ou alguma coisa em especial poderia convencer alguém de que desistir é uma possibilidade, especialmente quando se tem clareza sobre todas essas coisas e de tudo que se fez com relação a elas? Não seria orgulho e soberba demais pensar que uma vida seja tão fundamental para o equilíbrio do cosmos? É claro que não é e é claro que ninguém pensa isso. Então o que haveria de tão indigno em simplesmente achar que esta etapa chegou ao fim? O medo que não haja uma segunda chance? E de verdade não há! Nunca.
Seja como for, a decisão sobre não viver mais (naquilo que
se entende por vida nisso que chamo de senso comum e sem entrar em toda essa
discussão), tem inúmeros sentidos e possibilidades. O que quero abrir é a
possibilidade de que essa decisão pode ser apenas um ato sem todas as reflexões
e neuroses que geralmente provoca. O que fez com que tomasse essa decisão? Foi
o pote de café que pela centésima vez estava fora do lugar no qual deveria
estar? Não pensou em mim, em nós, em todas as pessoas que amam e admiram? Não
pensou em tudo o que representa e que tem ainda por fazer? Quero pensar que
talvez, em alguns casos, nenhuma dessas questões seja efetivamente relevante
para pensar o suicídio, entendendo que todas elas fazem sentido dentro de uma
determinada maneira de compreender a vida e a morte. Pensar que ele possa ser
uma decisão “natural”, sem dramas e pensada como um ato tão comum quanto ir ao
supermercado ou escrever um texto. Não nego a possibilidade de que haja
sofrimento, perda de sentido, incapacidade de pensar possibilidades e saídas.
Mas será que essas não seriam justificativas (no caso em que se tenha que
justificar) para a decisão pelo “fim” da vida e da existência (um conceito
profundamente ambíguo e contraditório uma vez que talvez nenhuma nem a outra
tenham fim – e não me refiro a vida eterna, reencarnação ou coisas
semelhantes)?
De certa forma trabalha-se com a ideia de que exista uma
quota de coisas a realizar durante a vida. Plantar uma árvore, escrever um
livro e ter um filho – diz o chavão. Essa quota parece variar de pessoa para
pessoa, dadas também as suas condições (nem todo mundo tem acesso à terra para
plantar, nem todo mundo acesso à educação formal para escrever e nem todo mundo
tem a capacidade biológica para gerar prole), e de algumas pessoas em
particular diz-se que suas contribuições são suficientemente necessárias para
que sejam prolíferas e prolongáveis. Inclusive concordo com a idéia de que
Marcella Althaus-Reid (falecida em 2009, e não por suicídio) poderia ter
produzido muito mais e nos ajudado a aprofundar a idéia de uma teologia
indecente/queer. O mesmo poderíamos dizer de tantos/as outros/as artistas e
intelectuais - e de maneira nenhuma me coloco nessa esfera de importância ou
influência. Na verdade, o que temos de cada um/a é o que temos. Nem mais, nem
menos. Se chegou a hora, se Deus quis assim, efetivamente, são perguntas e
especulações nonsense. Nem a vida e
nem a existência (do universo ou dessas pessoas) cessam com o fim da sua vida.
E a morte aparentemente sem sentido adquire o sentido que cada um quiser lhe
dar.
E se for possível consensuar, então, que a questão do
suicídio envolve uma série de questões e que, pelo menos uma delas, pode ser
simplesmente a decisão refletida de existir de outra forma (sem correr o risco
de dar um nome a essa forma, uma vez que ela não é) resta a pergunta por
“aqueles/as que ficam”? E aí parece residir justamente o grande problema com o
suicídio e a incapacidade de dar-lhe um sentido digno. A resposta rápida e
óbvia é que de que “quem fica” é que precisará lidar com a ausência, com a
culpa, com as pendências e todos os inconvenientes burocráticos (e, em alguns
casos, até mesmo policiais) por ele provocados. Afinal, quem se suicidou não
tem que lidar com nenhuma dessas questões (com exceção de um possível ajuste de
contas com Deus pela insubordinação, uma passagem pelo purgatório ou mesmo a
danação eterna, dependendo de quem avaliar e do tamanho de sua misericórdia).
Também aqui é preciso considerar que cada um/a reaja segundo
suas perspectivas religiosas, filosóficas, ideológicas, psicológicas,
sociológicas e antropológicas, reagirá de maneiras específicas. Alguns/as vão
se achegar, outros/as vão se afastar, uns/as vão querer explicações, outros/as
vão simplesmente condenar, uns/as vão querer detalhes sórdidos para matar sua
curiosidade, outros/as não vão poder nem ouvir falar para que o seu sentimento
de culpa não fique insuportável (Eu poderia ter dito! Eu poderia ter feito!). Poucos/as,
no entanto, vão poder conversar e lidar tranquilamente (inclusive psiquiatras,
psicólogos/as, analistas ou médicos/as) com a decisão de alguém pelo suicídio
como uma forma de terminar um processo simplesmente pelo desejo de seu fim. Não
como a impossibilidade de encontrar uma saída, mas justamente como uma saída
entre várias possíveis. Não como um gesto desesperado para quem tudo perdeu o
sentido, mas como um sentido em meio a tantos outros sentidos construídos numa
trajetória específica. Não há como negar que haja um certo egoísmo e/ou
individualismo nessa forma de ver o tema. Mas quem, em nosso contexto,
aceitaria discutir coletivamente e participar do processo de por fim a vida de
um/a amigo/a, familiar, conhecido/a. Até porque teria que responder
judicialmente. Trata-se, e é necessário que seja assim, de uma decisão pessoal
e que, no caso de não ser uma decisão fruto de uma patologia, não é de
responsabilidade de ninguém ou mesmo de algum fato ou situação.
Todas essas reações mencionadas são possíveis,
compreensíveis e aceitáveis. Mas também nelas há uma dose de egoísmo e
individualismo. A possibilidade de discussão e reflexão coletiva parece não
existir diante do tabu que o suicídio representa. Pensar nas formas como cada
um/a reage, assim como pensar as múltiplas faces do suicídio talvez ajude todo
mundo a lidar melhor com aquilo que envolve estar vivo e morrer, eliminando um
pouco da angústia e do medo e contribuindo para que a vida seja efetivamente
vivida com mais intensidade e não como uma tentativa incessante de retardar a
morte e prolongar a vida. Pois essa pode acabar a qualquer momento, por uma
decisão (minha, de outra pessoa ou de um ser supremo com capacidade de decidir
sobre mim, tanto faz).
Não elimino a possibilidade de que mesmo esse arrazoado seja
fruto das influências religiosas, filosóficas, ideológicas, psicológicas,
sociológicas e antropológicas que me foram constituindo. Não elimino nem mesmo
a possibilidade de que a tentativa de arrazoá-lo seja uma tentativa de dar
sentido ao que de fato não tem. Ainda assim, para fins de construção literária
e contribuição para a reflexão sobre o tema – se é que há alguém a quem lhe
interessa – descrevo assim as provisórias conclusões às quais cheguei e
construo a minha própria narrativa para dar-lhe sentido. O resto serão
interpretações valiosas sobre o viver e o morrer que ajudarão cada um e cada
uma a decidir sobre a sua própria existência.
Andre
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