Não é incomum que eu seja abordado ou receba emails de
pessoas que leram coisas que escrevi ou me ouviram em algum espaço falando
sobre suas experiências e de que forma o meu trabalho de alguma forma ressoa
nessas experiências. Foi assim, inclusive, que conheci o meu namorado. Guardo
com muito carinho e respeito todas essas confissões, em geral carregadas de
muita dor e sofrimento, mas também há alegria e satisfação. Elas acontecem
(pessoal ou virtualmente) num espaço que eu chamaria de sagrado e sempre me emocionam,
fazendo com que me sinta ao mesmo tempo privilegiado e responsável diante de
tamanha confiança. Essas experiências e os seus sujeitos, sem dúvida, são
incorporadas no trabalho que desenvolvo e na defesa das coisas nas quais
acredito e pelas quais procuro lutar.
Recentemente tive mais uma dessas experiências e que me
marcou profundamente. Fui abordado por um rapaz que disse que queria conversar
comigo. Percebi que ele tinha me esperado, e esperado a oportunidade em que
pudesse falar comigo privadamente. Naquela ocasião, não consegui dar atenção a
ele e ficamos de conversar em outro momento. Acabei esquecendo e quando o vi
novamente disse que ainda conversaríamos. Ele disse que não era nada importante
e apenas algum tempo depois a conversa aconteceu. Achei que ele queria comentar
algo sobre meu trabalho, perguntar alguma coisa, tirar uma dúvida. Ele era
bastante tímido e a conversa foi curta, talvez mais curta do que deveria ter
sido.
Em poucas palavras ele me disse: “Eu queria te dizer que
meus pais me mandaram para um desses programas para ex-gays. Eu fique lá
durante um período longo e no último dia em que eu estive nesse lugar eu fui
abusado sexualmente pelo diretor. Foi então que eu tive certeza de que não
havia nada de errado comigo. Eu só queria que você soubesse”. Ou mais ou menos
isso, porque de repente eu já nem consegui mais prestar atenção aos detalhes,
embora ele falasse com uma serenidade que ainda agora me espanta. Ainda falamos
de algumas outras questões. Eu disse que era importante que ele se cuidasse,
especialmente agora que estava explorando com liberdade o fato de ser
homossexual.
Foi apenas o tempo de eu me afastar um pouco, ficar sozinho,
e começar a chorar quase sem me dar conta. Chorei por sentir uma profunda
tristeza, de não ter dito tudo o que eu poderia ter dito para que ele ficasse
bem e para que as suas feridas, se não fossem curadas, fossem aliviadas. Chorei
de raiva, por imaginar que essas histórias são tão reais e tão presentes e
continuamos permitindo que elas se repitam em nome de sei lá o que. Chorei por
imaginar todas as coisas que foram feitas com esse rapaz e com tantos outros
nesse lugar e chorei por causa da minha sensação de impotência, por pensar que
eu não pude fazer nada para que isso não acontecesse, para que ele não tivesse
que passar pelo que passou. Chorei por tantos outros motivos e todas as vezes
que lembro dessa história choro de novo. E, provavelmente, todas essas questões
são mais minhas do que dele, pois o seu olhar expressava exatamente o que ele
me dizia: “Eu só queria que você soubesse”.
Queria pegar ele no colo, dizer que tudo ia ficar bem e que
ninguém mais faria mal a ele – algo que infelizmente eu não posso fazer, nem
garantir. Ainda tive uma última oportunidade de abraçá-lo e, olhando em seus
olhos, que nesse momento também se encheram de lágrimas disse: “Você é lindo,
Deus te ama e não deixa ninguém dizer o contrário”. Uma tentativa de bênção
para quem tão generosamente me buscou em confissão e compartilhou algo tão
íntimo e pessoal.
Fiquei pensando no que fez com que eu fosse, naquele
momento, a pessoa escolhida para ouvir essa confissão. Penso, e só consigo
escutar ele dizendo que “queria que eu soubesse”. Talvez como prova definitiva
de que os tais ministérios para ex-gays são efetivamente uma violação do direito
humano de auto-determinação no âmbito do gênero e da sexualidade e uso abusivo
da religião para manutenção de estruturas, padrões e relações de poder
desiguais. Talvez o fato de contar para alguém também fosse parte de um
processo de cura através da verbalização e do reconhecimento da violência
sofrida.
Na verdade não sei. Mas a firmeza, a simplicidade e a
serenidade com a qual ele me contou essa experiência me fazem pensar que, de
alguma forma, o fato de ele falar e o fato de eu saber pudessem fazer com que
outras pessoas não tenham que passar por essa mesma experiência, fazendo da
confissão uma denúncia. Por isso, talvez arbitrariamente, eu escrevo esse
texto, pois assim como esse rapaz
- eu queria que vocês
soubessem! -
E sabendo, fizessem alguma coisa para que impedir que
histórias como essas se repitam, marcando profunda e irremediavelmente a vida
de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais.
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