A
primeira vez que eu vi o Peter Nash foi através da janela da cozinha de uma das
alas de moradia do antigo “Prédio Velho”. Era meu primeiro semestre e ainda não
estava habituado ao mundo da Escola Superior de Teologia, mas já me chamou a
atenção um homem negro, com calças justas de corrida e cabelos com dreadlocks.
Só depois descobri que era um novo professor, vindo dos Estados Unidos. Ao
longo dos anos Peter se tornou uma das principais referências na minha formação
teológica e também um grande amigo e companheiro.
Meu
primeiro contato com Peter em sala de aula foi no componente curricular
“Introdução ao Antigo Testamento”. Acho que foi a primeira turma a ter aula com
ele e a principal dificuldade era com o idioma. Peter tentava se comunicar em
Português, mas raramente a turma o entendia – a situação melhorou nos anos
seguintes, mas falar Português sem dúvida não é o traço mais forte de Peter.
Lembro que durante a aula, diante da evidente incompreensão de estudantes, ele
começava a rir (com sua risada característica, fechando os pequenos olhos) e às
vezes atirava giz pela sala em sinal de frustração e para desespero de
estudantes aflitos/as de primeiro ano. A saída foi fazer as leituras e se
preparar para a prova final que foi de múltipla escolha.
Outro
componente curricular que fiz com Peter foi “aprendendo com maus exemplos da
Bíblia”. Já mais familiar com o idioma, foi um semestre muito produtivo lendo a
Bíblia com outras lentes – especialmente pelo viés da negritude – e
desconstruindo camadas de interpretação bíblica que esconderam questões
importantes dos textos. Com ele e mais tarde com a Dra. Maricel Mena López
aprendi sobre hermenêutica bíblica negra e hermenêutica bíblica negra
feminista. Era um tempo de descobertas para mim, para a EST e para a IECLB –
que nunca mais foram as mesmas.
Peter
foi um grande incentivador de meu intercâmbio nos Estados Unidos. Ele e Michael
Rose (outro professor visitante, da Alemanha) riam muito quando eu dizia que
São Leopoldo era uma grande cidade (vindo de Teutônia, uma cidade de
aproximadamente 20 mil habitantes), nos almoços de conversação em inglês dos
quais participei antes do intercâmbio. O meu intercâmbio, e especialmente o meu
estágio, nos Estados Unidos me aproximaram ainda mais de Peter e de seu
trabalho e luta no campo da Teologia Negra. A experiência de viver e trabalhar
numa comunidade afroamericana (em Newark, New Jersey), de ler Alice Walker,
Maya Angelou e escutar muito Tracy Chapman certamente marcaram minha trajetória
e minha teologia. Como diz Emilie Townes, eu finalmente questionei a minha
“branquitude” e entendi minha responsabilidade por desconstruir os privilégios
brancos – e não apenas cobrar das pessoas negras que lutem pelos seus direitos.
O mesmo processo tive que fazer com relação a minha masculinidade em meio a
feministas, mesmo que o fato de ser gay de certa forma nos aliava em nossas
lutas e formas de produzir conhecimento.
Imagino
que foram essas alianças que fizeram com que Peter me protegesse nos momentos
mais complicados que enfrentei na minha relação com a Igreja e mesmo com a
minha instituição de formação. Além das portas abertas de sua casa, o empenho
ativo em me proteger de determinadas perseguições e ajudar a encontrar caminhos
foi fundamental para minha própria vida. Eram também os tempos de Richard
Wangen e Wanda Deifelt. Sem eles e ela dificilmente teria sobrevivido e me
tornado o teólogo que sou hoje. E nessa caminhada se somou também Jette,
companheira de Peter, que primeiro foi minha amiga e provavelmente se demonstrasse
mais empática nos momentos de raiva e indignação, por exemplo quando decidimos
fazer camisetas com o slogan “há vida após a Igreja” e a ideia de comprar uma
ilha e convidar somente pessoas legais para morar lá.
Em
assuntos mais acadêmicos Peter me ajudou no processo de escrever uma monografia
(trabalho semestral) sobre Maya Angelou como co-orientador. Uma das passagens
mais interessantes sobre esse trabalho foi quando ele me apresentou a uma de
suas estudantes como autor do trabalho que tinha indicado para ela ler.
Surpresa ela me olhou e disse: “mas ele é branco”. Talvez esse seja um dos
maiores elogios que já recebi, pois entendi que apesar de ser efetivamente
branco e, por isso, portador de privilégios, de alguma forma eu podia me aliar
e contribuir para a luta do povo negro, que deveria ser uma luta de todas e
todos nós.
Nem
sempre é fácil entender o Peter – e não apenas por seu português muito
particular. Ele carrega muitas marcas sobre as quais raramente fala. Eu aprendi
a entendê-lo assim, sem ter que entender, e respeitar como mestre e como amigo;
respeitá-lo, mesmo quando ainda não tinha cabelos brancos, como na música de
Chico César:
Se eu quero pixaim,
deixa
Se eu quero
enrolar, deixa
Se eu quero
colorir, deixa
Se eu quero
assanhar, deixa
Deixa,
deixa a madeixa balançar
A homenagem a Peter Nash com a concessão do
título de Doutor Honoris Causa, mais
do que justa, é necessária. Ele influenciou uma geração de teólogas e teólogos
que estudaram na Faculdades EST e, sem dúvida, seguirá influenciando muitas
outras. Respeitem seus cabelos brancos!
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