Texto escrito em 2007, publicado na G-Magazine e na revista alemã Werkstatt-Schwule Theologie
O que aconteceu com o sexo?
por André S. Musskopf
Teólogo Gay/Queer
Já faz algum tempo que tenho refletido sobre a importância do sexo na construção da identidade gay. Tive uma fase em afirmar que minha identidade não era construída exclusivamente a partir do meu desejo ou das minhas práticas sexuais, para contrabalançar aqueles e aquelas que me viam apenas como um "ser sexual", ignorando todas as outras variantes que fazem parte da construção (e reconstrução) da minha identidade.
Como gosto de cinema e televisão (também das novelas!), fui levado mais uma vez a esta reflexão, e à minha já quase solidificada constatação, após ler uma entrevista de Gilberto Braga à G-Magazine (Março/2007). Nesta entrevista a respeito da novela Paraíso Tropical o autor afirma que "os meus gays não ocupam um espaço importante na novela ... porque uma história de amor gay pode não interessar à maior parte do público" e "os gays não têm história [em Paraíso Tropical] exatamente porque se eu der uma para eles, vou tirar o espaço de personagens para os quais está prevista uma história. Os gays devem ser bons coadjuvantes". Não tenho por objetivo fazer uma crítica à obra de Gilberto Braga ou ao seu caráter militante. Mas pensar no que tanto incomoda nas relações homossexuais, na dramaturgia bem como no cotidiano.
A reflexão: já fui levado muitas vezes ao cinema ou a locadoras pelos comentários sobre o "aspecto gay" de determinados filmes que chocaram audiências - seguramente com o objetivo de ver os tais "avanços" e, mais subjetivamente, a mim mesmo. Um deles que me recordo foi Alexandre, o Grande. Frustração! Talvez tenha lido os comentários errados, mas os supostos "componentes gays" não passaram de uma cena breve em que se insinua algum contato com um de seus súditos, que ninguém sabe se foram concretizados ao término do filme. O que ninguém deve esquecer é a cena tórrida de sexo de Colin Farrel (Alexandre) com Angelina Jolie (Olímpia). O exemplo mais recente é Brokeback Mountain. Este, que já foi lançado como um "filme gay", não poderia ser mais frustrante para alguém interessado em "sexo gay". Tirando a cena na cabana - e talvez a cena do beijo no reencontro - só consigo lembrar de outras cenas de sexo entre os cowboys e suas esposas. Não é à toa que no Brasil o filme foi lançado como o "segredo" de Brokeback Mountain. Poderia muito bem ser uma estória sobre dois amigos muito íntimos e muito companheiros, como as relações de amor fraternal descritas por inúmeros religiosos celibatários ao longo da história da Igreja Cristã. Como um "bom gay" eu posso imaginar o sexo e ir para casa com a sensação de que os homossexuais agora serão mais bem aceitos pela singeleza e pelo sofrimento expressos no telão. Coitados! Mas como um "bom gay" também quero saber o que aconteceu com o sexo?
Voltando às novelas, o próprio Gilberto Braga menciona as mudanças na abordagem do tema em A próxima vítima e América. Eu mesmo acompanhei e fiquei emocionado - eu confesso - com as histórias dos casais gays nestas novelas. Mas nem um beijinho? Que dirá sexo! Já sexo entre casais heterossexuais... Mesmo em Paraíso Tropical, personagens que eu colocaria no rol de "coadjuvantes", andam fazendo sexo com vontade. Outro dia vi uma cena de Bruno Gagliasso (o mesmo de América) com sua namorada em que ambos estava seminus, ela entrelaçando ele com as pernas, ele chupando os seios dela... ui! Já o casal formado por Sérgio Abreu e Carlos Casagrande... lindos, mas sem beijo e sem sexo, coadjuvantes sexless numa trama cheia de sexo. Defensores da moral e dos bons costumes?
Claro, não é preciso ir ao mundo do cinema ou da televisão para buscar exemplos similares. A própria comunidade gay tem construído suas fobias e mecanismos de ocultamento do sexo. Basta pensar nas reações causadas pelos "exageros" nas Paradas Gays na comunidade e a busca por parceiros/namorados cada vez mais discretos, mais masculinos, mais alinhados... aquele tipo que não causaria suspeita em lugar algum de ser, de fato, gay, e seria um sério candidato ao "genro que toda sogra sonhou". Nenhum vestígio de homossexualidade. O sexo fica no quarto, e os direitos também, é claro. Mas esta discussão já é bem conhecida e não vou me alongar nela, só dizer que suspeito que os motivos destas posições venham do mesmo lugar.
Mais um exemplo, este do mundo das igrejas. Talvez não seja muito conhecida a política de ordenação de homossexuais ao ministério, mas em algumas igrejas protestantes criou-se a "possibilidade" de homossexuais serem ordenados pastores, desde que sejam "não-praticantes". Ora, pressupõe-se que todo mundo saiba o que não se pode "praticar" a fim de que seja aceito como obreiro da igreja. Mas é bom dizê-lo: significa eliminar o sexo. O mesmo princípio regula a Igreja Católica Romana na sua relação com seminaristas e padres homossexuais, mas, neste caso, com o "atenuante" de que isto é exigido de todos, uma vez que o celibato é condição para o sacerdócio, sem exceções. Não vou aqui discutir o que de fato acontece na vida daqueles que se professam celibatários ou não-praticantes - poderíamos encontrar muito sexo aí. A questão é que no nível do discurso e da política eclesiástica parece atuar a mesma idéia que vinha identificando acima: acaba-se com o sexo (pelo menos pública e oficialmente) e as portas se abrem para "homo(já nem tão)sexuais". E também aí sabemos que não é bem assim que funciona.
A constatação: a questão da marginalização, exclusão e discriminação de homossexuais está proporcionalmente relacionada ao sexo. Esconde-se o sexo, a aceitação de homossexuais aumenta. Será? Bonitos, saudáveis, gentis, trabalhadores, sensíveis - tudo bem. Beijos e sexo - nem pensar. Como teólogo penso na histórica "negação ou domesticação" do corpo e da sexualidade, nos discursos sobre eles bem como em qualquer discurso teológico. Elogia-se a ideologia do amor romântico e a caridade fraterna, demoniza-se a materialidade do sexo e do desejo. Como pesquisador na área da sexualidade penso na higienização do sexo e na construção ideológica da família burguesa. Sendo assim, também tenho consciência dos limites e das possibilidades do sexo, em sua forma discursiva, na sua representação e nas práticas. Mas prefiro as possibilidades e o sexo.
Por mais que se questione a banalização do sexo heterossexual patriarcalmente definido (promovido pelas novelas ou qualquer outro meio de comunicação), também banaliza-se o sexo homossexual pela via do silêncio e do ocultamento. Ele já não nos pertence mais! Enquanto se deixa de veicular a mensagem de que o sexo gay é bom e saudável, transmite-se a mensagem de que é tão monstruoso que até mesmo um beijo precisa ser evitado para que, assim, os gays pareçam "normais" - comparados a quem? Tudo para que tenhamos últimos capítulos com muitos casamentos e crianças recém-nascidas ("Quanto maior a família melhor, diria o milionário Aristides de Páginas da Vida). E pobres das criancinhas que são influenciadas por estes meios diabólicos de comunicação: ou crescem e se tornam adultos homofóbicos, ou passam a adolescência tentando lidar com seus desejos, quando não se suicidam antes.
Ergamos nossa voz - pelo direito ao sexo! Nos quartos, nas telas de cinema e na televisão! Seguro, sem culpa e com tesão! Senão continuaremos sendo meros coadjuvantes sem uma história que seja nossa pra contar, e não cidadãos de verdade.
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