Quando o abandono é a única presença
Ricardo Lengruber Lobosco
ricardo@lengruber.com
No dia 22 de abril de 2011 foi enterrado como indigente o jovem Wellington, que se tornou conhecido, infelizmente, por ter disparo tresloucadamente tiros que mataram 12 crianças inocentes numa escola em Realengo no Rio de Janeiro.
Por um capricho do calendário lunar, a mesma sexta feira em que os cristãos de todo mundo rememoram a paixão e morte de Jesus de Nazaré.
À hora nona (momento em que um cordeiro era sacrificado diariamente no templo judeu), Jesus clamou em alta voz, dizendo: "Eli, Eli, lamá sabactâni?" que traduzido é: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?" e expirou logo depois após ter dito “Está consumado.”
Wellington Menezes de Oliveira foi aluno da Escola Municipal Tasso da Silveira até a 8ª série. Era filho adotivo de Dicéa Menezes de Oliveira; caçula de cinco irmãos, foi adotado ainda bebê. Sua mãe biológica sofria de problemas mentais e chegou a tentar o suicídio. É descrito por familiares e conhecidos como um rapaz calado, tímido, introspectivo, que não se envolvia em problemas nem desrespeitava regras. Embora sua mãe adotiva, falecida em 2010, fosse Testemunha de Jeová, Wellington não se tornou membro da religião. Passava boa parte de seu tempo navegando na internet, espaço quase único de sua convivência "social".
Wellington se refere em uma carta ao bullying sofrido na escola: "Muitas vezes aconteceu comigo de ser agredido por um grupo, e todos os que estavam por perto debochavam, se divertiam com as humilhações que eu sofria, sem se importar com meus sentimentos". E, conforme o depoimento de um colega: "Certa vez no colégio pegaram Wellington de cabeça para baixo, botaram dentro da privada e deram descarga". Esses maus-tratos aconteceram em 2001. Naquele ano, em 11 de setembro, o maior ataque terrorista de todos os tempos virou obsessão para Wellington.
Após a morte de Dona Dicéa, os irmãos vasculharam o computador do jovem e descobriram que ele fazia muitas pesquisas sobre armamentos. Descobriu-se que comprou dois revólveres e um carregador rápido, bem como tomou aulas de tiro, havendo evidência de que planejava a ação desde o ano anterior, sempre com idéias de vingança e com admiração por atos terroristas.
Durante a execução do atentado, cometeu suicídio após ser baleado na barriga. Seu corpo foi enterrado no cemitério do Caju, sem a presença de nenhum parente, numa cova rasa e sem lápide. Não se fez nenhum dos procedimentos que ele havia pedido na carta de suicídio. Há quem afirme que Wellington foi enterrado ao lado de sua mãe. A sensação é que temos um menino em busca do colo da mãe. Abandonado pela mãe (vitimada pela morte), parece procurar doentiamente outro abrigo seguro.
Na tarde de uma sexta feira, há cerca de vinte séculos, Jesus foi torturado e morto numa cruz romana. O evangelho de Mateus testemunha o episódio da seguinte maneira: "e estavam ali, olhando de longe, muitas mulheres que tinham seguido Jesus desde a Galiléia, para o servir; entre as quais estavam Maria Madalena, e Maria, mãe de Tiago e de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu. E, vinda já a tarde, chegou um homem rico, de Arimatéia, por nome José, que também era discípulo de Jesus. Este foi ter com Pilatos, e pediu-lhe o corpo de Jesus. Então Pilatos mandou que o corpo lhe fosse dado. E José, tomando o corpo, envolveu-o num fino e limpo lençol e o pôs no seu sepulcro novo, que havia aberto em rocha, e, rodando uma grande pedra para a porta do sepulcro, retirou-se." No evangelho de João, há um dado a mais: “Estava, porém, junto à cruz de Jesus, sua Mãe”.
Acreditar que a insanidade praticada pelo jovem Wellington é fruto simplesmente da maldade humana ou da doença é reduzir os fatos e esvaziá-los de suas muitas tramas e nós. Colocar tudo na conta de uma vitima de bullying é também desfocar as coisas.
Wellington é algoz e vítima ao mesmo tempo. Torturado por uma enfermidade psíquica que o alijava de tudo e todos, viu irromper o que há de mais cruel na mente humana e, pior, permitiu que as idéias se fizessem carne.
O ato insano de Wellington revelou que as pessoas precisam de cuidado. Mais do que família e amigos, nós precisamos de amor e afeto. Talvez a presença de pessoas atentas ao semblante triste do jovem fosse suficiente para acompanhá-lo, ampará-lo e, no extremo, inibí-lo. O fato é que Wellington estava só. Sozinho maquinou o mal e, por falta de cuidado, por falta de quem o chamasse ao bem, deixou eclodir de dentro de si a habilidade que puxou o gatilho dezenas de vezes. Sozinho matou. Sozinho morreu. Sozinho foi sepultado.
Os colegas de escola que o agrediram sistematicamente não são responsáveis pela crueldade da chacina, mas são, em certo sentido, cúmplices silenciosos. E o são porque ajudaram a madurar uma doença que, em vez de ser potencializada, carecia de cuidado e presença. Nessa mesma categoria, devem estar professores e familiares que não se debruçaram mais sobre a vida carente de cuidado de um enfermo de alma.
A questão é que nos permitimos enganar com a idéia de que cada um é responsável por si, quando, na verdade, somos mutuamente responsáveis uns pelos outros, desde que evolutivamente caminhamos em família e sociedade.
Nas salas de aula pelo mundo afora há crianças e jovens tão doentes quanto fora o assassino Wellington. Mas, para cada Wellington, há dezenas de "sãos" que riem, agridem, debocham, ignoram e, pior, não conseguem enxergar o semelhante por trás do jeito tímido e fechado. Sempre que houver uma mão estendida para ajudar esses enfermos, menos gatilhos serão puxados.
Algo semelhante se diz sobre quem matou Jesus. Simbolicamente somos capazes de nos irmanar a Pilatos ou a Caifás quando nos responsabilizamos por, analogicamente, matarmos a verdade do evangelho no mundo nosso de cada dia.
Fato é, entretanto, que a morte de Jesus tem algozes explícitos: autoridades constituídas que se viram ameaçadas em seu status quo e partiram para a solução definitiva do problema. O que a leitura teológica fez com o episódio da morte de Jesus foi uma espécie de potencialização do seu significado histórico. Se é verdade que o Galileu torturado e morto na cruz fora um inocente, passou a ser verdade no discurso esquemático dos cristãos que esse inocente culmina em si toda esperança religiosa e espiritual de uma tradição ancestral. Trata-se do próprio Deus que viveu e morreu por seus filhos. O cuidado elevado ao extremo!
Na morte de Jesus, depois de reclamado seu corpo por um discípulo até então desconhecido, havia umas poucas mulheres fiéis e órfãs diante de seu sepulcro. No sepultamento do jovem Wellington não havia ninguém. Eis a grande e profunda diferença que faz o cuidado na vida das pessoas.
De um lado, uma vitima inocente; de outro, um algoz covarde. Mas em ambos os casos, pessoas abandonadas. "Deus meu, Deus meu! Por que me abandonaste?"
Entre Jesus e Wellingnton há um abismo que os separa, se pensados sob a ótica da culpa e da responsabilidade. Mas há um fio tênue que os coincide, se vistos sob a questão do que nossa sociedade é capaz de produzir pela falta de amor e de cuidado. Curiosamente, a sexta feira da paixão de 2011 fez com que o bem e o mal (para alem dos esquemas maniqueístas) se encontrassem num mesmo sepulcro, sem muita gente que os chorasse.
Abandonados a si mesmos, Jesus e Wellington dividem a mesma solidão. A diferença, todavia, estava na força interior de Jesus de Nazaré, que conseguiu, a despeito da marginalização sofrida, lançar-se amorosamente na direção dos seus algozes. Wellington se lançou covardemente contra todos.
Enquanto perdurar a lógica individualista, cruzes e gatilhos matarão inocentes. Resta saber, no caso de Wellington, que Páscoa o espera. Acredito que a vida sempre falará mais alto, mesmo quando o sangue da violência nos tentar cegar e nos quiser fazer acreditar que há um castigo para os maus que nós mesmos ajudamos a gerar. Se participamos da morte de Jesus, porque não seria razoável aceitar ter participado da vida e da morte doente, descuidada e abandonada do jovem Wellington?
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