Dez dias em Cuba – Uma jornada contra a homofobia e outras experiências

Começo pelo fim, ou quase. Último dia em Cuba, voltando de Varadero, parada na Plaza de la Revolución em Havana. Era meu aniversário. Eu, o monumento à Revolução, outro a Jose Martí, o rosto de Camilo Torres estampado num prédio e de Che Guevara no outro. O choro era espontâneo. A Revolução, o socialismo, a vida em toda a sua força e ambigüidade. Si se puede! Si? Ainda teve conversas com amigos/as, café no Vedado, tentativas iniciais de organizar as idéias, um espetáculo de teatro experimental do Grupo Cervo Encantado, em câmera lenta, forte, duro, exibição de impressionante trabalho corporal e cênico, bolo de aniversário. Cuba já tinha transpassado meu corpo, de todas as formas possíveis.
Cheguei em Cuba com a mala cheia de perguntas, de curiosidade, de ansiedades, e um tanto de cansaço também. Procedimentos normais de imigração, aduana e já estava com Kirênia num carro antigo. Primeiras trocas de informação (Como está tudo? Como estão os/as amigos/as? A vida?) – um pouco de fofoca também - rumo ao Centro Memorial Martin Luther King Jr. onde fiquei hospedado por cinco dias. Mercedes Soza estava errada em uma coisa: nem tudo cambia.
No primeiro dia, organizar as atividades (constantemente reorganizadas a partir de então) e participação em Painel no Centro de Reflexión y Solidariedad Oscar Arnulfo Romero, para falar sobre “Diversidade em perspectiva teológica”. Primeiro passeio por Havana, em direção à Federação de Mulheres Cubanas. Primeiros reencontros e novos encontros. Gente conhecida, gente que me conhecia, gente por conhecer. Ao final da tarde, primeiro encontro com o grupo de estadunidenses (da Igreja Presbiteriana do Brooklin), parceira e apoiadora das atividades organizadas pelos grupos ecumênicos na Jornada Cubana contra a Homofobia. Reunião de organização e visita à casa de Kirênia e Raquel, recebendo companheiro do Sindicato dos Petroleiros e companheira do MST. Tomar um ônibus sozinho nem é tão difícil.
Ao despertar, conversa com Raúl Suarez, Diretor do Centro e Deputado da Asamblea Nacional del Poder Popular, no dia do seu 75º aniversário, o dia em que, como todo ano, recebeu um presente pessoal de Fidel Castro (soube-se depois que parece que eram livros). Em seguida, passagem rápida pela União Nacional de Escritos e Artistas de Cuba (UNEAC) seguida de visita à Universidade de Havana, guiada pelo historiador da Universidade, com suas peculiaridades e excentricidades – un tipo. Para sua surpresa, trocamos algumas frases em alemão – infelizmente sobre o Papa Bento XVI. Na passagem pela UNEAC, conversei pela primeira vez com Mariela Castro, que me impactou profundamente, por sua elegância, por sua simplicidade, por sua tranqüilidade, e também pelo alvoroço que sua presença causava. E certamente pelo seu trabalho na área de educação sexual e com/para questões LGBT. Ela ainda me impactaria diversas vezes nos dias vindouros.
Almoço no Centro (arroz congrí – adoro) e Painel, na UNEAC, com a presença de lideranças de grupos LGBT, intelectuais, lideranças religiosas e políticas. Na primeira fila Mariela Castro Espín, diretora do Centro Nacional de Educación Sexual (CENESEX) e Ricardo Alarcón, presidente da Asamblea Nacional. Falei (ou procurei falar) sobre o desenvolvimento de teologias desde a perspectiva da diversidade sexual, reclamando a autoridade de pessoas LGBT no âmbito das igrejas e da reflexão teológica. À noite, depois de um show de uma banda de jazz e rock anos 60 (sim) no Centro, visita ao Hotel Nacional, piñas coladas e caminhada pelo Malecón.
No sábado, atividades da Jornada concentradas no Pabellón Cuba. Primeiro, abertura no Cine La Rampa com presença de Mariela no melhor estilo “não se metam com Cuba”. Painel sobre Família e Sociedade com membros de famílias “alternativas” e sessão plenária com depoimentos emocionados e o melhor do espírito revolucionário - uma pessoa transgênero conclamando “tenemos que sindicarlizarnos”. Uma “conga” (parada, marcha, bloco) com música, bandeiras, cartazes e palavras de ordem até o Pabellón onde uma grande quantidade de pessoas circulavam pelas bancas de materiais informativos, camisinhas, atividades diversas. Ao meio dia, dei uma escapada com um amigo para comer uma pizza, dar uma passadinha na soverteria Copelia (hui, hoy es mi día de suerte, mira que encuentro maravillas – de Morango e Chocolate), trocar euros por pesos convertibles (não pesos cubanos).
Há tarde, uma celebração ecumênica “por la vida” com representantes de diversas tradições religiosas e um grande grupo de pessoas. Cantos, orações (a mim coube a afirmação do perdão) e um ágape (compartilhar de pão e mel) no final. Uma outra igreja é possível. De lá para um tour rápido pela Havana Velha e jantar. Para terminar, Gala Cultural no Teatro América, com um impressionante show de transformistas (Drag Queens) e outros artistas – concorridíssimo. Figurinos e números bem elaborados, majoritariamente músicas cubanas (com alguma licença quase poética para Lady Gaga) e participação efervescente da platéia, ovacionando as transformistas mais conhecidas. Una cerveza e conversa com amigos/as para acabar a noite.
Domingo o grupo se dividiu em dois para participar de um culto em duas comunidades religiosas. Almoço preparado pela comunidade La Fernanda e viagem para Santa Clara, umas três horas de Havana. Parada no caminho para um descanso e acabamos dando carona para um grupo de paquistaneses estudantes de medicina. Em Santa Clara, hospedagem no hotel Los Caneyes e refeições na igreja presbiteriana. À noite, visita a El Mejunje – os mais corajosos. Peça de teatro e festa em seguida. Santa Clara foi uma das primeiras cidades cubanas a ter shows de transformistas e grupos LGBT organizados. “El mejunje” (literalmente, mistura de várias coisas, ervas) é um centro cultural onde acontecem atividades para públicos diversos procurando articular uma outra perspectiva e forma de produção de conhecimento e construção de sociedade.
Dia seguinte, 17 de maio, Dia Mundial de Luta contra a Homofobia, participamos de atividades no “El mejunje”, circulamos pela cidade e embarcamos para Varadero – praia, finalmente. Antes, uma parada na Plaza de la Revolución dedicada a Che Guevara, com museu onde se encontram seus restos mortais e de outros soldados. Chegamos em Varadero à noite já. Jantar e um banho rápido, nas claras águas do mar caribenho, descanso e preparação para o dia seguinte.
Nos três dias seguintes, assessorei o curso “Diversidade sexual e teologia”. Utilizando a metodologia de educação popular, trabalhei com um grupo de lideranças cubanas formas de construir discursos e práticas teológicas que partam da experiência de cada um e cada uma reunidos/as em comunidade. Com o grupo do Brooklyn compartilhei o que tem sido produzido e quais as condições de produção de teologias LGBT na América Latina. Houve momentos de integração, de troca de experiência, de debate, de surpresa, de comunhão. Também momentos de festa, de celebração. Dias intensos, profundos, por vezes desestabilizadores, emoções à flor da pele. Ninguém voltou como veio. E de volta a Havana.
É difícil, ainda, colocar palavras no que tudo isso significou. Quiçá nunca será possível. Cada detalhe, os rostos, as roupas, os prédios, as ruas, os carros, as palavras, os olhares, misturados com as perguntas, com as ansiedades, e também com os projetos, os sonhos. O poder simbólico e real de Cuba para quem sonha e luta por uma outra sociedade, os erros e acertos, a continuidade e a necessidade do processo revolucionário, a institucionalidade, tudo como parte desse mejunje de coisas indissociáveis. O ânimo, o cansaço, a alegria e o desespero, as dúvidas e as respostas, as perguntas e as perspectivas... Tudo afirmado e questionado. E seguimos lutando, todos os dias, hasta la victoria siempre!

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