Sobre como fundamentalistas têm ajudado o feminismo e os movimentos pela diversidade sexual e de gênero
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Mas essa estratégia não é nova e nem de uso exclusivo de
grupos conservadores e fundamentalistas que operam dentro de uma ideologia
heteronormativa, classista e racista. Sim, eles também têm uma ideologia,
embora raramente o explicitem dessa forma. A estratégia de demonizar e
desumanizar o outro ou a outra talvez seja a mais comum em todos os
empreendimentos de manutenção do status quo opressivo e excludente, violento e
colonizador. Não se usa mais (da mesma forma como se usava no passado)
fogueiras, afogamento, guilhotinas, paredão, câmaras de gás. Esses instrumentos
de extermínio e aniquilação se apresentam hoje de formas diferentes, tão ou
mais cruéis que aqueles utilizados em outros períodos históricos. Mas a ênfase
discursiva agora parece estar mais no acolhimento amoroso e gentil para a
recondução dos desviados e das desviadas ao repasto bucólico e tranquilo
através da promessa de paz e harmonia. Cria-se um clima de caos, desordem, loucura
e insegurança para dizer que a culpa é “dos outros, das outras”. Mas isso já é
sabido e explicar o fenômeno não é a (única) estratégia, e talvez nem a mais
eficiente, para fazer frente a essa avalanche que pretende acuar e imobilizar.
Juntamente com o alvoroço em torno das questões de gênero,
da diversidade sexual, dos estudos queer, da discussão sobre homofobia veio um
interesse crescente por esses temas. Muitas e muitos de nós que temos
trabalhado com essas questões temos recebido desde pedidos informais e pessoais
para explicar do que se trata até oportunidade de falar em eventos, cursos,
espaços públicos de debate. De certo havia uma certa verdade no fato de que se
a gente começar a falar sobre essas coisas as pessoas vão ficar curiosas e vão
querer saber mais – e talvez até mudar de opinião. Parece que já é tarde
demais. O negócio tá na boca do povo.
Talvez o mais surpreendente seja que aqueles e aquelas que
não queriam falar sobre o assunto de repente se veem obrigadas e obrigados a
estudar e conhecer – e até falar sobre ele. Não são poucos os exemplos de
palestras, aulas, cursos, textos, blogs, programas de rádio e TV que têm
aparecido e circulado por aí nos quais pessoas e lideranças fundamentalistas e
conversadoras – inclusive no campo teológico – têm “apresentado” as questões de
diversidade sexual e de gênero de uma maneira minuciosa e informada e às vezes
nem eu sei se faria melhor. Ando aprendendo bastante inclusive. Contam com a
prerrogativa de que têm autoridade e capacidade de convencimento para que suas
reflexões e interpretações sobre as questões apresentadas sejam o suficiente
para convencer as pessoas das tais ameaças catastróficas e diabólicas que essas
questões representam. Dito de outra maneira, contam com a suposta ignorância e
incapacidade de reflexão das pessoas a quem se dirigem. E seguramente há muita
má fé e manipulação ideológica na forma como o fazem para atingir esse
objetivo, não há dúvida. Também não é novo.
Do ponto de vista de quem tem trabalhado e lutado pela
justiça social com justiça de gênero e sexual, podem estar prestando um grande
serviço. Não só porque colocam essas temáticas em pauta e oportunizam o acesso
a informações (ainda que apresentadas de maneiras altamente ideologizadas), mas
porque as experiências cotidianas das pessoas vão encontrando eco nas questões
levantadas e outros significados podem ser e são construídos. A dose de medo
introduzida nessa equação que visa provocar o pânico representa sempre um risco
na medida em que, quando ministrada em excesso, pode acionar outros processos
que já não estão mais sob seu controle. Também por isso o discurso vem
geralmente equilibrado com flexibilizações no âmbito do próprio gênero e da
sexualidade – e com pitadas grandes de amor. Já não se elimina ou demoniza o
prazer e o gozo da sexualidade e já não se restringe ou inferioriza o lugar e o
papel das mulheres de modo absoluto. No mundo do poder do capital tudo vira
produto – desde que a gente continue detendo o direito de patente.
O ponto é que nunca se tinha chegado a um grau de
popularização e de pre-ocupação tão grande sobre essas questões como desde
quando frentes conservadoras e fundamentalistas começaram a se ocupar de modo
tão sistemático e detalhado com elas. Nesse caso, ainda poderá ser válido o
ditado que diz “falem mal, mas falem”, pois o silêncio total representaria o
aniquilamento. Essa com certeza não é a única – e talvez nem seja a melhor
maneira – de olhar para a relação entre fundamentalismo e conservadorismo e
diversidade sexual e de gênero no contexto atual. Não desconheço, ignoro ou
deixo de me preocupar com as tragédias que temos visto em vários setores,
provocadas pelas reações aos avanços e às conquistas nessas áreas. Não tenho
dúvida de que eles mais atrapalham do que ajudam e de que a vida seria mais
fácil sem eles. Mas se o tamanho da reação é proporcional ao tamanho do
incômodo gerado, tendo a pensar que o trabalho feito até agora teve resultados
importantes.
De qualquer forma, essas são questões sobre as quais temos
pensado e conversado em alguns espaços e que talvez nos animem no processo
árduo de disputa que temos pela frente. A tarefa que segue é, pelo menos,
dupla: entender esse novo contexto e construir novas estratégias que permitam
aprofundar essas discussões e continuar realizando o trabalho de resistência e
luta já vinha sendo feito – nos movimentos sociais, nos espaços acadêmicos, nos
governos, nas igrejas – e retomar onde deixou de ser feito por acreditar que as
conquistas estavam consolidadas. Além disso, será necessário continuar
vigilante e enfrentando as estratégias que vão se reconfigurando e que vão
derrubando conquistas e retirando direitos. O trabalho de desconstrução das
distorções e manipulações continuará tendo que ser feito. Mas agora, em muitos
casos, já partimos de um outro lugar. Precisaremos, mais do que nunca,
construir formas de apoio, colaboração e cuidado mútuo para nos fortalecer
enquanto movimento. A outra velha estratégia – dividir para conquistar – segue
também firme e forte.
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