O meu “eu” interior

Virou moda (ou foi só mais uma vez repaginada, talvez agora com outros propósitos) essa história de buscar, encontrar, conhecer, conviver com o tal “eu” interior. Meditação, terapia, oração, substâncias químicas ou alucinógenas naturais, exercícios mil para elevar-se (ou embrenhar-se, ou...) para encontrar aquele ou aquela que se esconde, se esquiva, esconde-esconde e, ainda assim, misteriosamente, comanda a vida de cada um e cada uma.
Talvez eu frustre algumas pessoas pela minha aparente incredulidade, ignorância ou mesmo estupidez, mas o meu “eu” interior é composto de um sem-número de órgãos e tecidos (dizem os/as anatomistas) que se movimentam não menos misteriosamente sob o efeito de elementos sólidos, líquidos e gasosos (dizem os/as físicos/as, e talvez os/as biólogos/as) que entram e saem de mim voluntaria ou involuntariamente, ou que eu mesmo, através destes mesmos órgão e tecidos, produzo.
Na verdade, pouco disso eu mesmo pude constatar, senão que me lo informaram as aulas de biologia, as repetidas reportagens a respeito das novas descobertas sobre o corpo humano - nestes casos por semelhança ou analogia - ou alguns exames de raio X e uma endoscopia – nestes casos diretamente. Além disso, fui submetido a uma cirurgia para raspagem de carne esponjosa nas vias nasais e implantação de drenos nos tímpanos e outra para correção de uma fístula. A estes procedimentos me submeti ao longo dos meus 32 anos. Estas últimas intervenções, no entanto, não me deram as mesmas imagens concretas de partes deste meu “eu” que se esconde dentro de mim que obtive com as anteriores. Com relação a estas, não gostei muito do que vi. Não porque era necessariamente feio, mas porque tais imagens, de fato, não me dizem nada.
Afora estes casos, apenas por ocasião de momentos de excitação e prazer sexual tenho vivenciado a busca pelo meu “eu” interior, sozinho ou acompanhado. Embora o caminho percorrido e os pontos alcançados, nestes casos, sejam bastante periféricos (eu acho) a sensação de realização e plenitude (na maioria das vezes) é bem mais intensa e confortante do que nos casos anteriormente citados.
Embora eu jamais tenha me aberto a ponto de expor as minhas vísceras (assim o chamam os legistas) considero o meu conhecimento acerca do meu “eu” interior o suficiente para me preocupar apenas em manter alguns hábitos saudáveis (nem tantos, eu confesso), respeitar os sinais de mal-estar e buscar formas de mantê-lo minimamente equilibrado.
Sei que não é a este complexo sistema de órgãos e tecidos, líquidos e movimentos, que se referem aqueles e aquelas que refletem (e propagam) sobre a importância o “eu” interior. Nunca pretendi ser uma única pessoa, um “eu” apenas, simples, fechado, absoluto, imutável, decifrável e definível, encontrável e localizável. Há coisas, ou visões de mim, que fui descobrindo ao longo de minha existência, e, sem dúvidas, muitas outras que ainda descobrirei - e tantas outras que permanecerão por serem descobertas. Sou, sim, um mistério para mim mesmo.
Mas talvez a palavra “descobrir” não seja a mais adequada neste caso, já que é aí que, para mim, reside a maior fonte de desconforto com relação a este “eu” interior. Afinal, interior e descobrir referem-se a lugares concretos, localizáveis, encontráveis, prontos para serem des-cobertos e exterior-izados.
Também sou esperto o suficiente para compreender o seu sentido metafórico – mas aí o que estava no interior já foi metido para fora... eu sei, quase sem graça, estúpido até, mas não resisto; – e gosto de metáforas, pois elas têm o poder de transportar para outro lugar (ou um outro sentido). E é justamente aí que reside o meu questionamento, a minha angústia: é possível eu me transportar para um outro lugar que sou “eu” mesmo? Se este outro lugar é “eu” mesmo, por que teria que me transportar para lá? Este lugar não é aqui mesmo? E se é aqui mesmo, como me transportar para lá? Perguntas retóricas?
Consideremos por um instante que a pele que cobre o meu corpo é o limite de quem “eu” sou, é o que separa o de fora e o dentro. Neste caso, a reflexão sobre o meu “eu” interior feita acima estaria correta. E, por mais contraditório que pareça, ao fechar os olhos (já que eu fui dotado da possibilidade de ver) eu me recolheria para dentro de mim mesmo (excluindo-se os diversos outros orifícios que, neste caso, não parecem interferir no autoisolamento interior), pois estaria isolado das interferências exteriores que impedem este fechamento em si (aparentemente necessário para a busca – e o encontro – com o “eu” interior). Ainda assim, não veria o meu “eu” interior ao qual me referi, mas, assim prometem, um outro “eu”, interior, mas não, literalmente, no meu interior – em outro lugar?
Aqui preciso fazer outra confissão (e talvez nela resida o motivo de minha resistência, talvez inconsciente, pela busca recomendada): de olhos fechados eu me sinto um tanto claustrofóbico, e não consigo nem buscar, nem encontrar - nada. Por isso prefiro olhar para a parede durante a sessão de terapia deitado no divã de minha analista ou para objetos litúrgicos e mesmo para os corpos de meus irmãos e minhas irmãs quando em oração. Sim, eu faço terapia e tenho uma prática religiosa (pelo menos de vez em).
Consideremos, por outro lado, que a pele que cobre o meu corpo não é o limite de quem “eu” sou, separando o de dentro e o de fora, mas parte deste “eu” da mesma forma que os tecidos que formam os órgãos que não dou a ver, nem a mim mesmo. Neste caso, o dentro e o fora tornar-se-iam apenas circunstanciais, uma questão de ponto de vista – e fechar os olhos apenas um movimento como outro qualquer, comum em piscadelas ou na hora de dormir. E não haveria nada de tão misterioso ou escondido que justificasse tal busca. Consideremos que não há nada que defina a minha existência que não passe por esta unidade indivisível que é o meu corpo – com seus dentros e foras, com suas cavidades e sobressalências, visíveis, palpáveis mesmo que nem sempre facilmente – e nisto não sou nem inovador nem necessariamente criativo, já que pensadores/as como Merleau-Ponty já-lo disseram muito melhor antes de mim. E isto se referiria também às experiências extáticas e às lutas inconscientes, já que também elas não têm sentido sem um corpo, com seus interiores e exteriores, para se manifestar e materializar.
Sou herdeiro de uma tradição (teológico-filosófica) que, de alguma forma, temia (teme?) de tal forma a materialidade do corpo que a demonizou por não suportar a simplicidade de seu mistério. Dualismo, sim, dualismo. Por outro lado, sou fruto de uma cultura em que esta materialidade foi tão simploriamente simplificada que fez emergir e ressurgir formas de negá-la, ignorando a sua complexidade e reduzindo-a a um conjunto de partes funcionais. E continua-se com a proliferação de entidades (mente, espírito, alma, inconsciente...) que, todas da sua forma, configuram o “eu” interior.
Entenda-se que não nego a mutidimensionalidade da existência humana: a importância do autoconhecimento, do silêncio, do relaxamento, do êxtase, os subterrâneos, a profundidade, a reflexão... Incomodame-me, no entanto, a idéia de que estas experiências correspondem a um outro, que estão dentro ou fora – ainda que seja “eu”. Tem cheiro de coisa velha repaginada.
Eu quero todas estas experiências, do meu jeito, dentro das minhas possibilidades e limitações. Mas quero-as em mim, neste que é um, único e indivisível. Marcado pelas úlceras, pela fumaça do cigarro, pelas queimaduras do sol, pelas acnes hereditárias, pelas cicatrizes – por dentro e por fora. Este corpo-superfície (Foucault) onde estão inscritas as experiências de privilégio e preconceito, de prazer e falta, de fé e pão partilhado, de luta e futilidade, de minha infância e meu futuro – guardadas, mais ou menos visíveis.
Quanto ao meu “eu” interior... prometo fazer consultas periódicas e apalpar sempre que possível e/ou desejável.

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